Um colega levantou a questão de como traduzir o que, temporariamente, vou chamar as cincadas de George W. Bush. Traduzir as falas de George W. Bush é uma tarefa que, para o profissional, traz pelo menos três problemas.
O mais simples são os erros de gramática, dificuldade que não deve assustar qualquer tradutor, já que encontramos erros de gramática por todo o canto e mesmo nós próprios dizemos e escrevemos muita bobagem.
Depois, vem o fato de que o que ele diz nem sempre é muito claro. Problema maior, sem dúvida, mas, mesmo assim, não dos piores, já que traduzir textos obscuros é tarefa de todo dia.
O pior dos problemas, a meu ver, é o que chamo a questão ideológica. A maioria de nós – incluindo eu – discorda profundamente do ideário político de Bush e tem por ele uma antipatia fundamental, basilar, hepática, até, por assim dizer. É muito difícil traduzir um texto (falado ou escrito, se me permitem essa ampliação do sentido) de autoria de alguém que não nos é grato.
Há muita gente que advoga uma tradução ideológica: aproveitar a chance oferecida pela tradução para, na medida do que conseguir, pintar o diabo ainda mais feio do que ele na verdade é. Sou contra essa abordagem. Para mim, essas abordagens “ideológicas” são a antitradução. Fiquei todo contente de ler, no Quase a mesma coisa, do Umberto Eco, as cutucadas que ele dá nas “tradutoras feministas”, com o agradecimento a duas tradutoras de seus textos que preferiram fazer traduções sem qualificativos, não traduções feministas.
Então, a melhor maneira, para mim, de enfrentar as coisas que o Bush diz é simplesmente esquecer quem ele é. Democraticamente, afirmar que todos são iguais perante o tradutor/intérprete e dar ao discurso dele o mesmo tratamento que daríamos ao discurso de um político igualmente mal-falante, mas cujas idéias aprovássemos, ou, melhor ainda, de um sujeito que nem soubéssemos quem era e estivesse ensinando alguém onde era o banheiro mais próximo.
Não sou especialista, mas acho que o problema maior da forma da fala do Bush (embora não do conteúdo) seja causado por uma dislexia. Conheço uma senhora disléxica, muitíssimo querida minha, que diz coisas extraordinárias, não por burrice, mas pela dislexia. Se eu fosse traduzir o que ela diz, botaria tudo "em língua".
Nem de longe estou dizendo que, curada a dislexia, o Bush fosse virar intelectual e um homem do bem. Estou dizendo que as distorções produzidas em sua fala pela dislexia devem ser desperezadas pelo tradutor, assim como caberia desprezar o sotaque de um estrangeio, ou algum distúrbio da fala, como gagueira.