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domingo, 23 de dezembro de 2007

O estranho caso do teste pago

Nossa colega Alfa enviou seu currículo para uma agência e recebeu a proposta de fazer um teste. O teste era a revisão de um uma tradução automática de 22.000 palavras, no prazo de dois dias, por R$ 0,01 por palavra. Alfa descobriu que nossa colega Beta, sua amiga, tinha também enviado currículo para a agência e recebido proposta praticamente idêntica, com a diferença de que o texto a revisar era outro capítulo do mesmo livro. Desconfiada de que se tratava de uma trama para conseguir a tradução de um livro inteiro quase que gratuitamente, Alfa postou uma mensagem em uma lista de tradutores, gerando uma longa fieira de comentários. Até eu postei o meu, mas tive de abandonar a discussão porque estava atulhado de trabalho. Um dos comentaristas foi nosso colega Omega, que se identifica como proprietário da agência.

Estou usando nomes fictícios aqui não para proteger a identidade de ninguém, visto que a discussão foi mais que pública, com acesso fácil para os mais de dois mil assinantes da lista trad-prt. Quem não é assinante, pode se inscrever grátis e vai ganhar acesso quase imediato aos arquivos. Os nomes fictícios são para podermos restringir a discussão aos fatos, sem fulanizações.

Não enviar CV sem antes obter referências da agência solicitante foi uma das recomendações. O objetivo era evitar que agências mal intencionadas fizessem mau uso das informações. É inócuo: nossos CVs voam por aí, de mão em mão e eu já recebi mais de uma proposta de gente que tinha o meu sem que eu jamais o tivesse enviado a àquela pessoa. Sem contar o fato de que muitos de nós têm CV na Internet.

A remuneração do teste atraiu atenção por ser baixa. Reclamaram de um centavo por palavra. Entretanto, o que me surpreende é o terem oferecido remuneração. Por que alguém pagaria por algo que pode obter grátis? O mundo está cheio de gente disposta a fazer testes para tradutor sem ganhar nada. Será que a agência ficou boazinha, agora? Já deveria dar margem a uma que outra perguntinha.

O porte do teste é uma questão ainda mais interessante. Para dizer a verdade, acho que todo teste para o tradutor fazer em casa, grande ou pequeno, é bobagem. É mais que comum o candidato a emprego pedir "uma olhadinha" a um colega e o que a agência recebe é o teste do colega, não do candidato. Mas, enfim, as agências usam o teste como aquela famosa e provavelmente apócrifa história do homem que deu Sal de Fructa Eno para o filho que quebrara a perna: alguma coisa tinha que fazer e fez o que lhe era possível. Mas o porte do teste surpreende. Eu certamente recusaria um teste desses. Faço testes e a maioria deles fica em torno de 250 palavras, alguns um pouco maiores. Jamais fiz um teste de mil palavras. Maior que isso, nem pensar.

O tipo de teste é ainda mais estranho. A colega se candidatou a um lugar de tradutora, não de revisora, ao que tudo indica. E, mais que isso, não a revisora de tradução automática. O valor da tradução automática é questão controversa, mas podemos ter como certo que o sistema só funciona mesmo com textos de redação controlada, processados por programas de alta qualidade, devidamente "ensinados" por quem entende do riscado. Esses programas não se baixam com e-mule nem se compram no supermercado. Além disso, "ensinar" um programa desses é tarefa para cachorro grande. Revisar 22.000 palavras traduzidas automaticamente assim, a seco, em dois dias é tarefa hercúlea, uma verdadeira limpeza dos Estábulos de Áugias. Se a Alfa e a Beta, nessas condições, conseguem produzir algo que preste, são duas heroínas. Quer dizer, mais um motivo para recusar o teste.

A agência ia usar o resultado do teste? Não sei. Omega diz que ele tem lá seus métodos de selecionar tradutores e quanto a isso não deve satisfação a ninguém, no que está totalmente certo. Como ele seleciona tradutores é problema dele, não meu. Não gosto que se metam na minha vida, procuro não me meter na dos outros. Por outro lado, o tal teste era remunerado e, no meu entender, o pagamento, por pouco que seja, dá o direito de usar o teste como quiser, SALVO SE tiver explicitamente prometido não fazer uso comercial do material recebido. Na verdade, embora eu não saiba exatamente onde Omega queria ir, parece que tudo não passou de uma artimanha algo simplória para conseguir uma tradução barata. Há outras, muitas delas usadas por gente que a maioria dos tradutores consideraria honesta. Já mil vezes me pediram um desconto porque é o primeiro serviço e queremos testar sua capacidade, não tem fins lucrativos, o orçamento estourou, vai vir mais serviço depois, é para mim, é para minha tese e o que mais seja. Para mim, a agência que paga pouco por um serviço a pretexto de ser um teste não é nem melhor nem pior que os espertinhos acima – SALVO SE TIVER EXPLICITAMENTE GARANTIDO QUE NÃO VAI REUTILIZAR O SERVIÇO.

Mas, a bem dizer, simplória como é, quase funciona com a Alfa e a Beta e talvez tenha funcionado com outros. Espero que você escape dessas.

sábado, 8 de dezembro de 2007

Por que eu tenho que pagar o pato?

Esta história aconteceu comigo, há muitos anos, mas ainda é exemplar.

Uma empresa me pediu para eu dar uma olhadinha numa tradução para o inglês, para ver se havia alguma coisinha a mudar, porque podia ter passado algum errinho de revisão. Era o tempo do papel-que-vai, papel-que-vem e, quando abri, em uma página a esmo, me aparece the refectory counts with natural illumination. O resto era do mesmo quilate. Liguei para o cliente e disse, na lata, que o serviço tinha de ser refeito e cotei o preço.

Fez aquele teatrinho normal, fingindo-se surpreso com o valor. Disse que não podiam pagar tanto, que já tinham pagado um tradutor, e pagado muito, não poderiam pagar de novo. Essa é uma das choradas mais batidas.

Achei que era hora de levar na gozação. Aleguei quem deveria pagar o meu trabalho era o funcionário que tinha errado ao contratar um incompetente para o serviço. O homem disse que era inviável. Como segunda opção, sugeri que ele não pagasse o primeiro tradutor, porque o serviço era inútil. Também inviável.

Finalmente, pedi para o homem imaginar o seguinte: você está dirigindo seu carro com todo cuidado e vê que o guarda está anotando a sua placa. Para, pergunta qual é o problema e o guarda responde que um maluco tinha passado pelo sinal vermelho a uma velocidade tal que não tinha dado para anotar a chapa. Como solução, estava multando o primeiro carro que passou tão devagar que ele conseguiu ler a placa.

Resumo da ópera: um incompetente contratou outro incompetente e queriam que eu pagasse o pato.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

Microsserviços de tradução

Pipocou ontem uma discussão interessante numa das listas. Um colega recebe de um cliente o encargo de traduzir fragmentos de textos. O resto do texto já foi traduzido por alguém, não sei em que circunstâncias.

Do meu ponto de vista, o cliente tem o direito de distribuir o trabalho da maneira que acha conveniente. Se o cliente quer dividir o texto entre diversos tradutores, é direito dele. Se esse procedimento vai dar alguma vantagem, não me cabe julgar. Aparentemente, o cliente traduz internamente o mais fácil e encomenda do nosso colega os trechos mais difíceis. Poderia ser, também, que o cliente simplesmente quisesse a tradução de meia dúzia de parágrafos necessários para atualizar um documento, mas, ao que tudo indica, não é o caso do nosso colega.

Nosso colega não gosta muito do sistema. Por minha parte, estou tão acostumado que não me importo. Muito do meu serviço e do serviço de outros tradutores é traduzir partes de documentos.

Há mil razões para o cliente nos pedir a tradução de trechos isolados: pode ser uma atualização de um documento já traduzido, pode ser uma única cláusula de um contrato, para uso de um advogado. Pode ser, inclusive, como observa o colega, um "em casa a gente faz o fácil, o difícil a gente manda fazer fora". Não importa.

Quando recebo um pedido de tradução, levanto três questões. A primeira é ética: posso aceitar aquele tipo de serviço daquele cliente? Se puder, passo ao tempo: tenho como atender o cliente no prazo especificado? Se tiver, passo ao terceiro quesito: a que preço me convém aceitar o encargo? Essas três perguntas cabe exclusivamente a mim responder. Posso até consultar colegas, mas a decisão final é minha.

O problema de preço é crucial e muitos de nós começam a solução estabelecendo uma taxa mínima. Tanto por palavra, por lauda, por toque ou o que quer que seja, e o mínimo é X. Esse X deve corresponder a aproximadamente o ganho em uma hora de trabalho e é esse o mínimo que você cobra por qualquer pedido. Uma linha, que seja. Mais ou menos como a taxa de visita do eletricista ou encanador.

Isso vai estimular o cliente a agrupar os fragmentos e mandar coisinhas maiores. Se não estimular, tudo bem: traduzir duas linhas pela taxa mínima é mais que compensador.

Se o cliente mandar o filé para um tradutor menos experiente e os ossos para você, simplesmente ajuste suas tarifas. Sem problema, sem queixa, sem ressentimento. Sua tarifa normal é X, para textos de dificuldade média. Para textos de alta dificuldade, há um acréscimo de Y%. Todo texto fragmentário tem, por natureza, dificuldade maior e, ao enviar parte para um tradutor menos experiente e o resto para você, é o cliente que está dizendo que está te mandando os ossos, não o filé.

Se vai convir ao cliente continuar mandando linhazinhas soltas ou mandar o documento inteiro, não sei – nem é da minha conta. Dos negócios dele, sabe ele, não eu.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

E o que vale o meu diploma?

Numa faculdade, uma sala cheia de gente querendo saber como é isso de traduzir como profissão. Eu lá, dizendo as coisas que sempre digo, mesmo porque não tenho outras a dizer. Fala-que-te-fala, a lengalenga de sempre, uma voz irada se levanta lá do fundo: – E o nosso diploma, não vale nada?

Não sei se já contei essa história aqui. Tenho um arquivo dos artigos publicados e a história não está lá. Mas posso ter me equivocado. Paciência. Quem sabe publiquei e você não leu.

O bruaá na platéia indicava que estava se iniciando um daqueles famosos movimentos de revolta contra as pessoas que traduzem sem a devida qualificação profissional e tal. E eu, lá, que nunca fiz faculdade, deitando falação – que contradição, meu São Jerônimo! Os professores que estavam na mesa começaram a se coçar, o que indicava um tanto de mal-estar quanto à situação.

Respondi que o diploma, a bem dizer, não valia nada. No máximo, se bonito, poderia ornar uma parede. Para muito mais, não servia.

Irritação crescente, mãos de professores se estendendo para pegar o microfone e apartear, mas se contendo em tempo. Alunos de mãos crispadas. Gosto de viver perigosamente.

O que importava, na realidade, era o que se aprende na faculdade. Porque o diploma meramente certifica que você concluiu o curso com sucesso, o que não chega a ser de todo difícil. Cola-se, toma-se carona em trabalhos alheios, reciclam-se trabalhos antigos de outros alunos, coisas assim. Tive acesso a um grupo no yahoogroups onde a principal atividade era programar faltas coletivas, assim "ninguém saia prejudicado". Quando há falta coletiva, todos saem prejudicados. Tem gente que passa mais tempo no bar da esquina que na sala de aula. Claro, não são todos, eu sei e já sabia antes de você dizer.

O mercado não quer saber do seu diploma. O mercado quer saber se você agüenta o tranco. E o diploma não diz nada sobre isso. Digo mais, você pode ter certeza de que mesmo que tenha feito faculdade a sério, isso não garante que você vá agüentar o tranco. Só a experiência pode provar. Como diz o inglês, o teste do pudim é provar um pedaço.

Mas tenha certeza: se fizer a faculdade a sério, na melhor tradição CDF, suas possibilidades de sucesso vão ser muito maiores que a do pessoal mais esperto, que ficava no bar e só voltava à sala de aula quando o celular dava um toquinho. Faculdade é como bufê de restaurante: os pratos estão na mesa, você se serve. Fazer um bom prato e comer tudinho, sem deixar nada, é responsabilidade sua. Só o professor pode ensinar – mas só o aluno pode aprender.

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

O tradutor e o contrabaixo

Do ponto de vista do pessoal que faz música clássica, as vozes se dividem em soprano, meio-soprano, contralto, tenor, barítono e baixo. Soprano é a mais aguda. Os mesmos nomes são aplicados, com alguma liberdade, a famílias de instrumentos fabricados em diversos tamanhos, como os saxofones. Existem saxofones sopranino, soprano, alto, tenor, barítono, baixo e contrabaixo. Se você nunca viu ou ouviu um saxofone contrabaixo, clique aqui.

Tentaram fazer um sax subcontrabaixo, ainda maior e mais grave que o contrabaixo, mas não deu muito certo e essa história não importa para nós agora. Importa que contrabaixo é, de modo geral, o instrumento mais grave de uma família.

Muitas vezes, esses termos são usados, por metonímia (creio eu, nunca entendi muito bem essas coisas), em substituição ao nome inteiro do instrumento. Esse procedimento é comum: a gente fala em vestibular, não exame vestibular; os advogados falam em inicial, não em petição inicial; ou o gerente do banco fala em promissória, em vez de nota promissória. É necessário completar mentalmente: dizer que Coleman Hawkins tocava tenor, quer dizer que toca saxofone (ou simplesmente "sax") tenor.

Assim, o instrumento mais grave entre os arcos ficou conhecido por contrabaixo, do italiano violone contrabasso. Contrabaixo é aquele gigantesco violino que se toca em pé. O pessoal da música popular foi truncando para baixo e é comum dizer que Luís Chaves é o baixo do Zimbo Trio.

Contrabaixos são instrumentos problemáticos e alguém teve a idéia de construir um contrabaixo elétrico, que, a bem dizer, é um contrabaixo de guitarra, não de violino. Entretanto, muita gente que tocava contrabaixo passou para o instrumento elétrico e, hoje, baixo normalmente significa o instrumento elétrico, nos meios não-clássicos. Nesse caso, cada vez mais, o instrumento tradicional se conhece por baixo acústico. Quer dizer, o nome do instrumento tradicional ganha um apêndice esclarecedor. O nome do instrumento mais moderno dispensa o qualificativo, por ser o mais comum.

O mesmo está acontecendo conosco, os tradutores. Quando inventaram aqueles programas que traduzem, eles se chamavam tradutores eletrônicos, tradutores automáticos, programas de tradução ou coisa que o valha. Atualmente, viraram tradutores, como indica a quantidade de pessoas que cai aqui no blog em busca de tradutores, mas não quer saber nem de mim nem de você, mas sim de um programinha porreta que dê conta de uma tradução na hora, com perfeição e, claro, grátis.

Logo, logo, assim como já há músicos dizendo que tocam baixo acústico, vamos nós dizer que somos tradutores humanos. Ainda bem que somos humanos, não é?

segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

Busdoor e quotaholder

Então, estava a turma reclamando da invasão americana. Isso, porque o barzinho tinha delivery e self-service. Por que não entrega em domicílio e auto-serviço? E logo veio alguém falando do tal busdoor, que sem ser português, também não é inglês, embora Oswald de Andrade provavelmente aplaudisse como exemplo de antropofagia. Aí, eu lembrei do tal do quotaholder, que é o ataque tupiniquim à língua inglesa.

Gozado como tantos tradutores brasileiros defendem essa gárgula lingüística com unhas e dentes. O número de pessoas que tentou me explicar a diferença entre ação e cota, como seu eu não soubesse, é enorme. Acham que, se temos duas palavras em português, havemos de ter duas em inglês. Mais ou menos como se, por termos salsicha e lingüiça, houvéssemos de ter em inglês sausage e linguosage, coisa assim.

Implico com o termo desde que comecei a traduzir, em 1970. Não está no Black's, nem em nenhum outro dicionário uma definição de quota que justificasse o tal do quotaholder. Quota existe em inglês, mas não significa cota no sentido de participação no capital social, mas sim no sentido de ração, limite quantitativo e, para quem não está acostumado com tupiniquinglish, quotaholder dá a impressão de que significa titular de uma cota/ração, mais ou menos como havia nos tempos de racionamento.

O argumento, entretanto, era imbatível: não há sociedades limitadas no direito anglo-americano e é importante usar um termo especial para indicar uma realidade totalmente brasileira. Jamais concordei. Achei que deveríamos proceder por analogia, mas, enfim, era uma coisa meio difícil de decidir.

Minha posição ganhou sustança com o advento das LLC - Limited Liability Companies, que são muito parecidas com as nossas Sociedades Limitadas, ambas inspiradas na GmbH alemã. Isso já é coisa do século passado, entenda. E os titulares de participações nessas sociedades são members, e os members são titulares de membership units ou até mesmo de shares, como neste documento da própria SEC, entre outros

Quando digo essas coisas, as reações dos colegas se dividem. Alguns concordam comigo, mas dizem continuar usando quotaholder, porque "os outros" não aceitariam a mudança. Ah, "os outros", essa conveniente legião de seres malignos, responsável por todos os erros deste mundo, cujos largos ombros tantas vezes carregam o peso de nossa própria inércia! Como se não fôssemos nós os outros dos outros! Outros colegas respondem com as duas mãos espalmadas, naquela posição clássica de orante, e respondem – Não, Danilo, mas pô!

E, pelo menos em São Paulo, mas pô! é o argumento final, irretorquível, aquele para o qual ninguém tem resposta.

domingo, 2 de dezembro de 2007

Tradução é uma estiva

Tradução é uma estiva, acho que quem falou foi Ivan Lessa, no tempo da máquina de escrever – e era verdade. Podia ser fácil ou difícil, não importava. Tinha que bater aquilo tudo, letra após letra, página após página. Havia ainda os números, uma desgraça para nós, que traduzimos finanças. O corpo ficava moído: doía perna, doía braço, doíam costas, doía tudo. Além disso, sempre faltava um parágrafo no meio e a gente tinha que montar com tesoura e cola. Depois, era revisar, mexer e remexer, até ficar bom.

Dava dó, a sujeira que ficava. Precisava passar a limpo. Às vezes, quem passava a limpo era a secretária do cliente. Outras vezes uma datilógrafa autônoma. De um jeito ou de outro, tinha que revisar a datilografia e devolver para fazer as emendas. Um tempão para datilografar, um trabalhão para revisar, às vezes um dinheirão de datilografia – e o serviço era urgente.

Muito disso acabaria se eu usasse um micro. Por exemplo, poderia mexer e remexer enquanto traduzia. Depois era só imprimir. Nunca mais ia precisar passar a limpo. Eu sonhava com um micro, mas faltava dinheiro: computador era caro e impressora, caríssima.

Um dia, veio uma encomenda muito grande. Brincando, disse ao cliente que, no prazo que ele queria, nem com um computador: precisava de dois, um para mim, outro para minha mulher, que trabalha comigo. Depois, fui ficando tão entusiasmado, que ele acabou financiando as máquinas.

Fomos dos primeiros a usar computador e eu exibia orgulhoso os trabalhos feitos com MicroEngenho2 e Mônica. Hoje, quase todo tradutor tem micro e nós sonhamos trocar os 386 por 486 e a LaserJetIIIp por uma que imprima em cores – mas falta dinheiro. Não pagamos mais datilógrafa, mas o que gastamos de equipamento, programas e livros não é pouco.

O trabalho ficou melhor e mais fácil: é só digitar o texto, mexer e remexer sem dó, tirar os erros piores com o revisor ortográfico, imprimir, mandar ao cliente por fax, alterar o que ele pedir, imprimir de novo e entregar junto com o disquete.

Ficamos mais exigentes: antes, não tendo erros, chegava. Agora, passamos horas polindo estilos e diagramando balanços, até ficarem como queremos. O cliente também está mais exigente e acomodado: copia nosso trabalho diretamente em seu papel timbrado, para poupar custo e tempo. Por isso, pede para alterar a diagramação ou reimprimir meia dúzia de páginas porque quer mudar algum dado no original – e é urgente.

No fim do da, o corpo está moído, dói perna, dói braço, doem costas, dó tudo – e os olhos ardem. O micro mudou nossos métodos e nosso produto. Mas tradução ainda é uma estiva.

O texto acima foi escrito por mim e publicado pelo Estadão, no dia 2 de agosto de 1993, no Caderno de Informática, que então saía nas segundas feiras. Numa arrumação de papelada, topei com ele e achei que valia a pena reciclar aqui. Agora, 14 anos depois, não se manda mais serviço para aprovação via fax nem se entrega a forma final em disquete: vai tudo via Internet. Entretanto, no fim do da, o corpo está moído, dói perna, dói braço, doem costas, dó tudo – e os olhos ardem. O micro mudou nossos métodos e nosso produto. Mas tradução ainda é uma estiva.

sábado, 1 de dezembro de 2007

De estagiários e escraviários

O uso e abuso do trabalho de estagiárias apareceu em dois pontos de encontro virtuais que freqüento. A lei que permite contratar estagiários a um custo muito baixo facilitou a vida de muita gente, não só de quem precisava de um estágio de tradução para conseguir seu diploma.

Um estagiário não é simplesmente um tradutor "mais em conta". Um estagiário não é um tradutor. Entretanto, vemos empresas encarregando estagiários de tarefas que estão acima das capacidades de um estagiário e também da capacidade de um profissional experiente.

Algumas dessas empresas agem assim por ingenuidade. Muita gente subestima o trabalho de tradução e pensa que dar conta de 10.000 palavras por dia, cinco dias por semana – e sem erros, por favor é absolutamente normal. Ou que traduzir textos xls ou ppt é coisa simples, só escrever por cima. Ou que a podridão computatória que ninguém mais aceita usar é mais do que boa para uma estagiária que "só digita texto".

Outras empresas simplesmente não estão interessadas em saber. Exigem, forçam: o problema, para elas, limita-se a ter o serviço pronto no prazo e ao menor custo possível. O resto que se dane.

A maioria dos estagiários não tem formação profissional nem experiência bastantes para explicar ao empregador quando a missão é impossível ou o que é necessário para viabilização. Aceitam de boa fé e, à medida que se atolam, vão percebendo que não vai dar certo. Mas mesmo que tivessem a capacidade para avisar antecipadamente, a maioria dos empregadores não está interessada em ouvir a opinião de estagiários. E assim vamos.

Você não é obrigada a fazer milagres em geral nem muito menos o milagre particular de explicar o que mal sabe a quem não quer ouvir. Faça o que puder, faça como melhor puder, aprenda o que conseguir e vá embora com a consciência tranqüila, procurar serviço melhor.

Por outro lado, se você caiu numa empresa onde o pessoal agiu de boa fé, bom, é a hora de se desdobrar e botar as coisas nos eixos, pesquisar, perguntar, tentar resolver os problemas, na esperança que, terminado o malfadado estágio, você ganhe uma efetivação. Se não vier a efetivação, pelo menos você aprendeu e fez amigos.

O primeiro indício de que o estágio é só uma forma de conseguir serviço barato é a falta de um profissional da tradução para supervisionar. Estagiário, de qualquer área, tem que ser supervisionado por profissional experiente da mesma área. Veja, por exemplo, o caso dos médicos residentes: são diplomados, é fato, e, portanto, não são estagiários. Mas, mesmo assim, se submetem a ganhar pouco para trabalhar com profissionais mais experientes e aprender muito. É um excelente investimento. O mesmo deveria acontecer com os estagiários de tradução. Se você for estagiar numa empresa onde não há um só tradutor ou onde seu supervisor é um monoglota vindo de outra área, relaxe, respire fundo e encare: provavelmente lá vem bomba. Mas não se desacorçoe, porque o estágio acaba logo e você, de um modo ou de outro, vai aprender muita coisa.