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segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Já estou cansado!

Tenho de dizer que já estou cansado de ouvir clientes finais, donos de agências e gerentes de projeto falando mal de tradutores e editores. Por outro lado, também estou cansado de ouvir tradutores e revisores falando mal de clientes finais, donos de agência e gerentes de projeto. Achar defeito no trabalho dos outros é muito fácil, mas pouco útil, por pelo menos duas razões: primeiro, a gente ganha muito pouco falando mal dos outros e, segundo, os outros geralmente não dão a mínima para o que a gente diz.


Isso dito, faço aqui a solene promessa de nunca mais criticar clientes finais, donos de agência e gerentes de projeto. Mas certamente vou criticar a mim próprio e aos membros da minha tribo, a tribo dos tradutores e revisores. Um pouco de autocrítica, um pouco de mea culpa, não faz mal a ninguém, desde que seja uma crítica honesta e inclua um certo esforço para abandonar os caminhos do pecado. Não, acho que vou fazer uma coisa melhor: em vez de autocrítica, vou escrever uma lista de decisões. Ainda é meio cedo para decisões de ano novo, mas não faz mal.

Prometo que vou sempre passar o revisor ortográfico mais uma vez antes de entregar o serviço. Uma vez, decidi fazer uma mudança de última hora em uma tradução para uma agência americana, onde ninguém entendia uma palavra de português. Fiz um “substituir todos” e, em conseqüência, mudei não só a palavra que queria mudar, como também as tripas de uma outra palavra mais comprida. Não me perguntem qual: prefiro esquecer essas coisas. Depois, o pessoal de DTP formatou o texto e mandou para o cliente final, que sabia português e quase teve um infarto. Se eu tivesse passado o revisor ortográfico mais uma vez, antes da entrega, teria poupado ao cliente um grande constrangimento e eu próprio não iria sofrer o prejuízo financeiro que sofri. E, já que estamos falando nisso, também prometo nunca mais usar o comando “substituir todos”.

Quando estiver revisando o serviço de um colega, prometo que nunca vou fazer uma alteração sem uma justificativa melhor do que “porque fica melhor assim”. Uma das coisas mais irritantes para um profissional é ver seu trabalho cheio de alterações aparentemente sem proveito nem finalidade. O gerente de projeto, que muitas vezes não sabe português, quando o cliente é estrangeiro, fica sem entender o que está acontecendo nem o que fazer. O tradutor fica zangado e tudo o que o revisor tem a dizer é “bom, fica melhor assim”. Nem sempre a gente pode justificar todas as alterações com gramática e dicionário, mas, pelo menos tente dizer coisas do tipo para manter a uniformidade, ou para melhorar a coerência. Comecei a agir assim e, aos poucos, estou desenvolvendo um conjunto de regras claras e precisas para melhorar a qualidade das traduções que reviso, isso para não falar das minhas próprias.

Não vou ficar furioso por causa de alterações de revisores. Se o revisor fizer uma alteração aceitável em minha tradução, eu vou aceitar. Se a alteração for inaceitável, entretanto, vou conversar com o gerente de projeto e tentar explicar claramente por que eu não concordo com ela. Não há motivo para começar cada um de meus comentários com alguma coisa do tipo “esse cricri imbecil…”. Simplesmente, vou tentar citar alguma prova de que estou certo. Por exemplo, a ortografia brasileira é governada por lei (2623/55, com suas emendas) e o regulamento pode ser encontrado em qualquer dicionário. Veja a regra 53 e note que ela dá pleno apoio à minha pontuação. Se você não leu a regra 53, abra o dicionário e leia agora. Talvez você tenha uma surpresa.

Vou conferir a formatação de minhas traduções. Faz muito tempo que decidi aprender a formatar um documento direito com o MSWord. Nada de muito especial: O Word não é o QuarkExpress e eu não presto serviços de editoração eletrônica. Mas certas coisas como usar tabelas e tabulações corretamente, formatar parágrafos deslocados como se deve, em vez de usar marcas de parágrafo e espaços, coisas desse tipo. Se você não está entendendo, então precisa passar uma tarde com uma boa introdução ao Word for Windows. Quando terminar a tradução, veja se em algum lugar há dois espaços consecutivos. Salvo se o texto for em inglês e os dois espaços consecutivos forem usados no fim de uma sentença (e de todas as sentenças), não deve haver nenhum caso no texto todo. Muitas vezes, batemos a barra de espaço duas vezes ou mais entre uma palavra e outra e muitos de nós esquecem de apagar os espaços que sobram antes de entregar o serviço e, assim, o texto fica parecendo queijo suíço. Os espaços no início da linha ou antes de marcas de parágrafo ou tabulação também são um mau costume. Não deixe aprender a usar o tabulador. E nunca use um hífen quando deveria usar um travessão, por favor. E nunca use dois hífens quando deveria usar um travessão. Aquele pessoalzinho bom que edita seu trabalho ou faz editoração eletrônica vai ficar grato e, quem sabe, lembrar de você nas suas orações. E é mais provável que o cliente lembre de você para um outro serviço.

Vou respeitar as convenções tipográficas da língua de chegada. Os números em inglês seguem a regra do xxx,xxx.xx e em português a do xxx.xxx,xx, não faz diferença se a gente está contando dólares, reais ou camelos. Também vou respeitar todas as convenções sobre uso de maiúsculas e pontuação.

Não vou aceitar serviços que não possa fazer. O cliente (ou o gerente de projeto) pode bater a cabaça na parede, se quiser, mas não vou aceitar um prazo apertado demais. Não vou dar ouvidos àquela história de que é um serviço fácil, porque sei que isso não existe. Não vou dar ouvidos àquela história de que uma “minuta” serve, porque sei que o mesmo sujeito que diz que quer o texto “só para informação” é exatamente o mesmo que depois vai dizer que eu fiz um serviço porco e cobrei um dinheirão. Evidentemente, isso significa que vou aprender a fazer estimativas realistas do tempo necessário para fazer um serviço. Nunca mais vou dar uma olhadinha e dizer “tá bom, acho que vai dar.”

Vou fazer questão de ter tudo por escrito. Não estou dizendo que os clientes sejam desonestos. Mas a melhor maneira de evitar mal-entendidos é escrever tudo antes de começar a trabalhar: taxas, datas de entrega e quantificação. Se a contagem se basear no original, peça ao cliente a contagem e aceite antes de começar. Se o cliente insistir em uma contagem um pouco menor que a sua, não reclame: cada versão do Word for Windows dá uma contagem diferente. Simplesmente aceite as pequenas diferenças como coisa da vida. Se a diferença for grande, investigue o assunto. Se a taxa for boa, às vezes até uma contagem baixa demais pode ser aceitável. Nesse caso, não reclame. Se a paga final for baixa demais, não aceite o serviço. O que importa é que tudo deve estar por escrito e bem explicado. Quando receber as informações do cliente, leia tudo direitinho. Monstros terríveis muitas vezes se ocultam por detrás de um palavreado aparentemente inofensivo. E, finalmente, nunca aceite nada que o cliente diga que é somente “para constar”. É justamente esse trecho que o cliente vai pedir para você ler muito cuidadosamente, quando chegar a hora. E, se o acerto vier em forma de e-mail, imprima e pendure onde você veja. Combinar tudo por escrito, conferir o combinado direitinho e deixar tudo sempre à vista são um dos meios mais importantes para assegurar a satisfação do cliente. E, como você sabe, cliente satisfeito é cliente que volta.

Vou sempre cobrar o máximo e fazer um serviço tão bom quanto possível. Vou sempre procurar conseguir o maior pagamento possível por qualquer serviço que aparecer. Mas, depois de aceitar o serviço, vou esquecer quanto estou recebendo e fazer a melhor tradução que puder. Jamais vou fazer uma tradução de segunda e dizer que está até que boa demais para o que estão pagando. É uma estratégia é contraproducente, porque, quando alguém precisar de um bom tradutor, vai provavelmente oferecer ao sujeito que fez a tradução melhor, não a quem fez uma tradução “compatível com o preço”.

Não mentirei. Se não puder terminar o serviço em tempo, vu dizer “Desculpe, subestimei o tempo que precisava para essa tradução”. Ninguém mais acredita naquela história do HD novinho em folha que deu pau mais uma vez ontem.

Vou sempre conferir minha tradução, para ver se tem tradutorês. Tradutorês, caso você não saiba, é aquela língua esquisita que só se encontra em traduções. Não existe razão alguma para uma tradução parecer esquisita. Se você está traduzindo para o inglês, por exemplo, procure coisas como “The legislator of our fatherland found it to be a good thing to allow such action, being that under the previous legislation it was held to be illegal”. Se estiver traduzindo para o português, procure coisas do tipo Suficientes dados não estão disponíveis para que pudéssemos tornar nossas ações consistentes com… Não há justificativa para uma coisas dessas. Também procure coisas que não fazem muito sentido para você, porque, se não faz muito sentido para, você, provavelmente não vai fazer sentido algum para o leitor.

Não vou tentar “melhorar” o original. Tenho grande orgulho de meu trabalho como tradutor e não sinto o ímpeto de mostrar aos leitores de minhas traduções que grande escritor que eu sou. Por isso, não tento “melhorar” os originais que me confiam para traduzir. No início, muitas vezes eu tentava, até adicionando alguma coisa que achava de interesse, ou omitindo coisas que eu achava inúteis. Não faço mais isso. Com os prazos que tenho, mal dá para fazer uma tradução decente. E, de um modo ou de outro, quem lê a tradução tem o direito de saber o que o autor disse, não o que eu acho que ele deveria ter dito.

Não vou discutir com o cliente por causa de preferências de vocabulário e sintaxe. Se o cliente quiser mudar o texto, pode mudar à vontade. Vendi o texto para ele, e ele agora é o dono do texto. Essa é uma das razões pelas quais não gosto de assinar traduções. Finalmente, reservo-me o direito de jamais trabalhar para o cliente de novo – quer dizer, se eu encontrar outro melhor.

Não vou contradizer meu cliente. Se o cliente disser que a irmã dele poderia fazer a tradução, não vou abrir a boca. Se o cliente disser que o primo dele tem um programa que pode fazer a tradução, não vou discordar. Se o cliente alegar que, se eu insistir nesses preços abusivos, ele vai pedir para a filha dele fazer a tradução, vou, muito educadamente, dizer – desculpe, esse é o mínimo absoluto que eu posso cobrar –, sem uma sombra de ironia, desligar, e deixar que ele se dane.

Não vou falar mal de colegas, mas, se encontrar erros de tradução, vou apontar. Jamais vou dizer – não dê essa tradução para a Fulana, a mulher é quase analfabeta – , mesmo se souber com certeza que ela é mais burra que a mãe da burrice. Entretanto, vou dizer ao cliente que não acho mandate of security uma tradução decente para mandado de segurança e não quero saber quem disse que era.

Não vou brincar com taxas e condições de pagamento. Só vou aceitar o serviço quando o cliente e eu estivermos de acordo quanto a taxas e condições de pagamento e o cliente entender exatamente o que está pagando. As agências sabem exatamente o que estão fazendo, mas muitos clientes finais não têm idéia. Por exemplo, quando o cliente é brasileiro, provavelmente vai pensar que a lauda equivale a uma página de seu texto, o que não é verdade. Algumas agências pagam de acordo com o original, outras, pela tradução, e essas coisas precisam ser combinadas antecipadamente. E, feito o acordo, vou cumprir tudo cuidadosa e estritamente. Por exemplo, se o pagamento não estiver na minha conta na data combinada, o cliente vai ficar sabendo no dia seguinte, logo cedo.

Jamais vou me apresentar como “free lance”. Acho esse termo pejorativo. Um “free lance” é um mercenário e eu não sou “soldado da fortuna”. Sou tradutor profissional e faço o máximo para me conduzir como deve um profissional liberal.

E, finalmente, não vou resmungar. Estou cansado de ouvir tradutores, revisores, donos de agência e gerentes de projeto que vivem reclamando de tudo, do tanto que trabalham, do pouco que ganham, dos clientes e fornecedores incompreensivos e desonestos, de tudo. Considero reclamar um desperdício de tempo e energia. Vamos investir nosso tempo e energia em melhorar nossa sorte.

11 comentários:

robertobech disse...

Com certeza, um do dos seus melhores posts. Vou até fazer um PDF jeitoso e guardar aqui no PC.

Anônimo disse...

Sr. Danilo,

Adorei o texto e percebi que preciso seguí-lo. Hehehe.

Posso usar seu texto no meu blog, com os devidos créditos?

Abraços,
Yasmin.

Danilo Nogueira disse...

Claro, Yasmin! Uma honra.

Fernanda de Castro disse...

Sim, sim, sim!!!! Me identifiquei horrores com seu texto!!! É uma sensação ótima saber que não se está sozinha no mundo... só o "substituir todos", puxa, sou viciada neste comando, mas sei bem o que vc quer dizer com os problemas que ele pode gerar... E COMO SEI!

Anônimo disse...

Maravilhosas as suas resoluções, Danilo. São muito úteis não só para os tradutores, mas para todos os que trabalhamos com o texto.

Abraço,

Pablo
http://cadeorevisor.wordpress.com

Patrícia disse...

Adorei o texto, parabéns!

Patrícia disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anônimo disse...

Obrigado de novo! Adorei as regras também. Li do início ao fim!

Patrícia disse...

Olá!! Muito interessante o seu texto, adorei! Serve também para os revisores.
Patrícia.

Danilo disse...

Mandate of security foi o auge!

Sempre recomendo, em Direito, se não souber o termo correlato, apele ao seu equivalente latino.

O writ/order mandou um abraço para a sua amiga. =P

Unknown disse...

Danilo que maravilha de texto. Esse deveria ser o juramento de todo tradutor ao se formar. Deveria ser emoldurado e colocado em frente à mesa de trabalho para que com o tempo, o tradutor não se desvituasse do bom caminho.
Parabéns, Mestre.