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sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Por que acho que é necessário traduzir com casca e tudo

Deixa contar para você por que eu defendo tanto a ideia de que o tradutor/intérprete tem que transmitir a mensagem recebida com casca e tudo, em vez de “dar uma adoçadinha”, como diz uma amiga. Talvez até já tenha contado, aqui, mas vale a pena repetir, entre outras coisas porque acho que a única pessoa que leu tudo o que eu escrevi aqui sou eu próprio.

Estava servindo de intérprete (não sou intérprete, mas “servi” de intérprete consecutivo, em alguns casos) entre um escocês e um brasileiro. O escocês até que entendia português e falava um pouco, mas achava mais fácil falar inglês e valer-se dos meus préstimos, como se dizia antigamente.

O diabo do escocês começou a usar uma linguagem dura, descortês e eu, para evitar o “incidente diplomático”, descascava e adoçava, servindo ao brasileiro somente a polpa, às vezes com uma colheradinha de mel. O escocês, notando o que eu fazia, começou a carregar na linguagem, que se tornava cada vez mais ofensiva. O homem estava se divertindo, à custa do interlocutor e à minha custa. Era óbvio que ele se comprazia em ver as minhas cabriolas para abrandar o discurso e com a impunidade que eu lhe estava garantindo.

Comecei a achar que estava sendo cúmplice daquilo, das ofensas a uma pessoa que não merecia ser ofendida ou que, ao menos, merecia o direito de saber que estava sendo ofendida. Comecei a sentir que era como se eu estivesse segurando o brasileiro, para que o escocês batesse com mais gosto e liberdade.

Então, comecei a traduzir precisamente o que o escocês dizia. A primeira reação do brasileiro foi se voltar contra mim, mas logo se deu conta do que estava sucedendo. O rapaz, normalmente quieto e cheio de polidez, virou bicho. Deu um murro na mesa do escocês, que era o chefe dele, encarou o homem e disse poucas e boas. O valentão afinou e mudou o tom da conversa. 

7 comentários:

Raquel Schaitza disse...

D.,

Dizem que rezar, fazer contas e xingar só fazem sentido na língua nativa.

Rezar não rezo em língua nenhuma, então não sei, mas até mesmo uma conta simples me exige grande esforço se tentar fazer em inglês. E podem usar a four-letter word comigo quanto quiserem que não me ofendem nem 10% do que o equivalente em português.

Having said that, sei de um caso parecido. Numa assembléia sócios brasileiros e estrangeiros só faltavam se matar. Eliana Stabile, minha sócia, traduzindo. A uma altura, usou um termo que ela considerou de baixo calão. Alguém na platéia interrompeu e disse "não foi isso que foi dito, a intérprete suavizou".

A Eliana não tinha tido intenção alguma de suavizar, mas foi o que lhe ocorreu no momento. Alguém não nativo da língua, não sente nem usa (mesmo que conheça) esses termos da mesma forma que um nativo.

Já eu tive que traduzir uma pergunta extremamente grosseira para um estrangeiro. Meu coração batia na boca, parecia que eu mesma estava dizendo tudo aquilo. Sei lá quanto acrescentei de açúcar ou não, mas funcionou.

E acabo de desenvolver uma teoria de araque: a pessoa que diz essas coisas está vivendo uma emoção que o intérprete não está. O intérprete é pego de surpresa, além de achar as palavras ainda tem que entrar no clima de supetão. No curtíssimo tempo disponível, talvez simplesmente não dê para "chegar lá".

Fim do parpite! :-)

Raquel Schaitza

Danilo Nogueira disse...

Há uma distinção enorme entre a situação da Eliana, que não conseguiu chegar lá, e a do profissional que não chegou lá por opção.

E a intervenção da plateia comprova a afirmação do Renato: embora não fosse culpa da Eliana (para quem não sabe, grande amiga minha também), o participante achou que todos tinham o direito de saber o que tinha sido dito.

Isto está ficando divertido.

Raquel Schaitza disse...

Verdade, há uma diferença grande.
Yes, traduzir e intepretar é uma festa!

Verdade, há uma diferença grande. Mas sei que em algumas horas o intérprete opta, sim. E o "pacote" inclui enfrentar causas e consequências.

Disclaimer: gentiiii, eu traduzo tudo bonitinho, não fico censurando. Clientes, podem confiar em mim! Só entendo que essas coisas realmente acontecem.

Raquel Schaitza

Raquel Schaitza disse...

Verdade, há uma diferença grande. Mas sei que em algumas horas o intérprete opta, sim. E o "pacote" inclui enfrentar causas e consequências.

Disclaimer: gentiiii, eu traduzo tudo bonitinho, não fico censurando. Clientes, podem confiar em mim! Só entendo que essas coisas realmente acontecem.

Raquel Schaitza

Lorena Leandro disse...

Eu já suavizei bastante também, quando trabalhava em escritório e tinha que traduzir o que o chefe britânico falava para os funcionários. Como eram relações mais próximas, o chefe era novo e na maioria das vezes brincalhão, dava para me safar de falar uns palavrões cabeludos, dizendo: "Gente, ele está nervoso e falando os piores palavrões, melhor prestar atenção"! E, claro, o vermelho do rosto dele, em combinação com as veias saltando, já falavam por si só.
Bom, passando por essas situações a gente chega a conclusões e eu cheguei a uma importantíssima: a de que não sirvo para ser intérprete. Primeiro, por não conseguir proferir palavrões cabeludos e segundo por só conseguir traduzir em blocos (cortando os devidos palavrões!).

Danilo Nogueira disse...

Pergunta: você consegue escrever o que você chama de "palavrões cabeludos"?

É uma questão ética muito importante. Porque, se você não consegue escrever, vai ter, inclusive, que recusar certas traduções.

Nada de errado com esse não conseguir. É algo assim, como ver sangue e cortes: eu me dou muito mal com isso e, portanto, passo longe de tradução médica.

Lorena Leandro disse...

Escrever eu consigo, Danilo, porque ninguém está me vendo. Engraçado, né? Não que eu não fique constrangida também, mas é diferente. Call me crazy! Quando eu cursava jornalismo, meu marido e eu tínhamos uma peça de teatro para apresentar e quando começamos a escrever o texto, achamos que o protagonista deveria ter boca suja. Nos empolgamos muito nesse quesito! Depois, tivemos que cortar um monte de coisa! rs