Uma das listas de discussão de que faço parte congrega muitos professores de línguas. Lá pelas tantas alguém perguntou quem poderia fazer uma pequena tradução, evidentemente grátis. Foi um bafafá dos bons. Tradutores reclamando que professores não devem fazer traduções, que não se deve trabalhar de graça, alguns professores concordando, outros discordando, aquela coisas toda que você já pode prever. Pouco participo daquele grupo, mas, como a história era de tradução, resolvi meter a minha colher torta no angu de caroço. Aqui está, com algumas modificações, a minha mensagem. Veja lá o que você acha e faça seu comentário.
Desde 1970, me dedico inteiramente à tradução e é como profissional da tradução que venho meter meu bedelho aqui na conversa.
Existem bons e maus tradutores, como há bons e maus professores, cozinheiros, advogados, encanadores e solistas de sacabuxa. Quer dizer, entregar uma tradução a um tradutor, em vez de a um professor, não é assim, garantia de que o serviço vá sair com qualidade total e perfeita. E, principalmente tratando-se de um trecho pequeno, é até bem possível que um professor possa se sair bem. Como também pode se sair bem como tradutor bissexto de poesia.
Por outro lado, haverá mais que um excelente professor que dê com os burros n'água para traduzir um texto qualquer. Ensinar e traduzir são atividades diferentes e gente muito bem-sucedida numa pode ser um fracasso na outra. O mesmo se estende a profissionais como secretárias e recepcionistas bilíngües.
Muitos tradutores foram professores antes de serem tradutores e, quando empreenderam sua primeira tradução, ainda não eram tradutores, se me faço claro. Por alguma porta temos que entrar e os únicos que podem reclamar de fato são os bacharéis em tradução. Mesmo eu dei as minhas aulinhas lá pelos tempos do Castello Branco e, quando "peguei" minha primeira tradução, não tinha uma noção muito boa do que ia fazer. Quer dizer, não me acode o direito de reclamar se algum dos professores aqui se decidir a aceitar o serviço.
Nem vou me sentir prejudicado. O que prejudica a profissão não são os professores que traduzem uma dúzia de linhas para um colega, seja cobrando ou não. São os figurões do magistério e das letras que traduzem livros inteiros grátis ou a preço vil para as editoras e ainda passam por benfeitores da comunidade.
O que me distingue — enquanto tradutor profissional — dos tradutores eventuais e bissextos é a minha dedicação preferencial à tradução.
Enquanto que mais de um dos professores aqui da casa poderia traduzir vinte linhas numa tarde de domingo, para ajudar um colega, é necessário um profissional para encarar certas tipos de trabalho e prazos. Por exemplo, recentemente passei meses traduzindo documentos em xml usando Trados TagEditor em uma memória de tradução residente em um servidor que estava em Zurique. É possível que a maioria dos leitores da lista CVL nem entenda o que eu disse no período anterior.
Mas não é só isso: traduzir vinte linhas num dia é uma coisa, traduzir vinte mil palavras em uma semana é outra, bem diferente — e coisa para profissional. Traduzir aquilo de que se gosta pode ser até divertido; traduzir o que é necessário é coisa para profissional. Traduzir um artigo científico pode ser uma aventura intelectual de primeira linha. Ter prazer em traduzir 100.000 palavras de um relatório anual de um banco, porque toda tradução é um desafio e um prazer, é coisa para profissional. Traduzir uma grande obra literária pode ser uma festa, traduzir livros de auto-ajuda, porque é preciso, porque tem muita gente que lê essas coisas e se escora nelas para agüentar a vida, é coisa para profissional.
Quer dizer, eu traduzo porque, para mim, traduzir em si, qualquer coisa que seja, é uma festa. Hoje em dia, só traduzo finanças, mas isso foi o que me aconteceu, não a minha escolha. Se as voltas do mercado tivessem me encaminhado para outra área, trabalharia com o mesmo prazer.
Quanto ao trabalhar de graça, desculpe, mas eu não traduzo de graça e também não aceito que trabalhem de graça para mim. Quando quero um serviço, primeiro trato preço, depois autorizo. Ajudo muito os colegas, com artigos, palestras e mesmo com o meu blogue, mas tradução só faço a pagamento. É o que dizia a Cacilda Becker: não me peça para fazer de graça a única coisa que tenho para vender. Havia um Código de Ética do Tradutor que proibia trabalhar grátis para quem pode pagar.
Não acho nada de errado um professor traduzir vinte linhas grátis para um colega: o que ele tem par vender são aulas, não tradução. Mas eu, que sou profissional da tradução, não traduzo grátis. Posso até explicar o uso de um tempo verbal em inglês, assim, na base do passei, cinco minutos, dei a explicação. Mas se um professor começar a dar aulinhas grátis, vai formar fila porta da casa dele.
Nunca entendi, por outro lado, porque estudantes e acadêmicos querem descontos ou trabalho grátis. Quem vai fazer intercâmbio não pode pagar tradução? Ué, tem dinheiro para a passagem de avião mas não para pagar tradutor? Tese não tem objetivos econômicos? Claro que tem! Defende tese, vira Dr., ganha mais na faculdade. Está investindo no seu futuro! Então, invista o seu dinheiro, não o meu. Porque, quando trabalho grátis, estou deixando de ganhar dinheiro fazendo serviço remunerado, que não me falta. Por que raios o dinheiro sempre acaba cinco minutos antes de chegar a hora de pagar o tradutor?
Outro dia, veio aqui um vizinho com um texto de medicina, de, creio, umas boas 50.000 palavras, de que ele precisava com urgência. Ajuntou que "era para a faculdade" algo que, traduzido assim, no popular, significava "não quero pagar". Quando respondi que aquilo significava 15 dias de trabalho e que, durante esses quinze dias, ele iria ter que pagar todas as despesas da minha casa, inclusive os custos tremendos de um tratamento de saúde que minha mulher fazia na época, virou as costas e foi embora, zangado comigo. Paciência, assim é a vida.
Alguém aqui comentou "que custa fazer grátis?" Aqui, há que fazer à moda jesuíta e responder com outra pergunta: "que custa pagar?" Porque fazer grátis custa tanto para mim quanto pagar custa para o outro.
A bem dizer, quando se faz grátis a alguém algo por que se poderia cobrar (no caso, o tempo que o tradutor gastaria na tradução), estamos reduzindo nossos próprios rendimentos. Quer dizer, se eu faço uma grátis uma tradução pela qual normalmente cobraria cem reais, estou reduzindo minha renda em cem reais, dando a essa pessoa, tirando da minha família, o valor de cem reais. Por que eu devo fazer essa doação? Essa pessoa realmente precisa do meu sacrifício?
Não é tanto sacrifício assim? Bom, se é pouco dinheiro, uma miséria, um nada, que não vai fazer diferença no bolso de ninguém, porque, então, não me podem pagar?
quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009
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5 comentários:
Para mim, este parágrafo é o melhor em todo o artigo:
"Nem vou me sentir prejudicado. O que prejudica a profissão não são os professores que traduzem uma dúzia de linhas para um colega, seja cobrando ou não. São os figurões do magistério e das letras que traduzem livros inteiros grátis ou a preço vil para as editoras e ainda passam por bem-feitores da comunidade."
Concordo 100%.
Nunca li nada no blogue a respeito da biblioteca básica do tradutor. Parece óbvio que gramáticas e dicionários são fundamentais, mas gostaria de ler um post sobre o tema, em todo caso. Já existe um post do tipo?
Peço desculpas por registrar meu comentário em um post sobre tema tão diferente, mas uma vez que não encontrei um marcador específico, o contrário seria impossível.
Quanto ao blogue, admiro-o por servir de fonte de informação a tantos iniciantes (como eu) que se sentem desamparados nessa profissão, que é solitária por excelência.
Obrigado e um abraço!
Uirá Catani
Boa idéia, Uirá, está no forno!
Uirá, o primeiro artigo está aqui:
http://tradutor-profissional.blogspot.com/2009/02/biblioteca-basica-do-tradutor.html
... mas só serve de "cabo" para a série.
Concordo plenamente com tudo que foi dito neste post, tradutor não deve fazer traduções de graça mesmo, afinal quem hoje em dia faz alguma coisa de graça minha gente? Traduzir exige tempo, concentração e além de tudo tornar o texto fluente para a língua para qual se traduz, ou seja, dá um trabalho danado. Em dez/ 2010 me formo em tradução e interpretação, e já sinto na pele o quanto que essas áreas exigem de nosso intelecto, para quem está de fora acha que é simples assim... mas,não é.
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