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terça-feira, 14 de julho de 2009

Como se Traduz Hernando's Hideaway?

Já contei a história do Hernando's Hideaway? Talvez você devesse primeiro ouvir a música clicando aqui. É a referência a um boteco, onde o amasso era permitido. Os compositores são Richard Adler e Jerry Ross e a música faz parte de "Pajama Game", musical da Broadway, baseado em um livro e que deu origem a um filme de sucesso no final da década de 50, no século passado.

Mas este é um blogue sobre tradução e é de tradução que vamos falar.

Traduzir letra de música para o português é uma tarefa árdua. Principalmente quando a peça é descritiva e o letrista-tradutor tem que, de um modo ou de outro, encaixar a história toda dentro do leito de Procusto da melodia, ainda mantendo os acentos tônicos nos tempos fortes. Sem essa de "a tradução portuguesa é sempre mais longa e não dá para acompanhar a métrica". Não cabe? Faz caber e pronto!

Você pode gostar da música ou não, isso não vem ao caso. Mas preste atenção ao que acontece aos 50 segundos: a cantora canta o breque "Hernando's Hideaway, oh-lay!" Como se traduz isso para o português? Esconderijo do Fernando, olé? Tente cantar essa frase dentro das oito notas do breque. Sobram duas sílabas, ou faltam duas notas, como queira. Dá para mastigar duas sílabas, mas fica horrível. Além disso, a rima, coitada, morre.

Como é que faz então? Note que estou falando de uma "versão" (é assim que é costume chamar as traduções de letra de música) para ser cantada em auditório, em baile, ou no chuveiro, gravada em disco, essas coisas. Não para ser lida. O problema aqui é diferente do enfrentado pelo legendador e suas restrições quanto a número de caracteres por linha e tempo de permanência da legenda na tela. O problema, aqui, é encaixar na melodia.

O letrista brasileiro, cujo nome esqueci e não consegui encontrar na Web (se você souber, por favor, me conte), partiu do princípio que o "olé" do breque era essencial, com o que concordo. O "olé" consome duas das oito notas do breque, tantas quantas o "oh-lay" do original. Até aí, tudo bem.

Mas o nosso "olé" termina numa vogal aberta, ao passo que o "oh-lay" do original termina num ditongo fechado, da mesma forma que "hideaway". Quer dizer, mesmo que o letrista preservasse o nome do estabelecimento, sob a alegação de que é nome próprio e nome próprio não se traduz, ia perder a rima. Podia esperar que o "olé" fosse dito à espanhola, com vogal fechada, mas não ia dar certo, porque o "Hideaway" termina em ditongo, não em volgal. Além disso, o nome no original ia ser um problema para o público brasileiro, naquela época muito menos acostumado a ouvir e usar termos em inglês. Estamos falando de 1957, lembre.

Então, é necessário traduzir o nome do estabelecimento, de modo que a última sílaba rime com "olé" e, além disso, tenha o nome do proprietário no fim, a boa moda portuguesa, que manda dizer "Esconderijo do Fernando" em vez de "Fernando'do Esconderijo". Inglês é tudo de trás para diante, como já notava Obelix. Então, o letrista trocou o "Hernando" por "José", o que rima direitinho e ocupa mais duas notas, ao contrário do "Hernando's", que ocupa três. Sobram quatro notas para o "hideaway", mas "esconderijo do" tem seis. Então o letrista traduziu o "esconderijo do" por "Na Toca do", que tem quatro sílabas. Veja que, na tradução de letra de música, sobrarem notas é tão ruim quanto faltarem

Agora, exercite seus dotes canoros e cante "Na toca do José, ooooooooo-lé" junto com a Gladys Hotchkiss, ali, na hora do breque, e veja como cai bonitinho, inclusive com os acentos tônicos nos mesmos lugares que em inglês. Se entender de música, você vai perceber que tanto as tônicas do inglês como as do português coincidem com os tempos fortes da melodia.

Perfeito, não é? Agora, é disto que eu estava falando, no artigo anterior, ao falar em relevância: o relevante, no caso, não era o nome exato do boteco, porque não aparecia no disco nem no baile nem no chuveiro: qualquer nome servia, desde que transmitisse a idéia de "oculto". O fato de que Hernando não é José e que "hideaway" não é propriamente uma toca não tem tanta importância quanto o metro e o ritmo e a ideia de que era um lugar discreto que levava o nome de seu proprietário. Quer dizer, vão-se os aneis, ficam os dedos.

A tradução da legenda do filme (que eu não vi) deve ter sido bem diferente. Mas as restrições impostas pelo meio legendagem são totalmente diferentes das impostas pelo meio canção, como também são totalmente diferente daquelas impostas pela dublagem e é por isso que quando a gente pega um filme dublado e legendado, o que os atores dizem nunca é exatamente o que está nas legendas. Mas isso é papo para outro artigo. Por hoje, chega.

Um comentário:

Igor Barca disse...

É verdade, traduzir música é muito complicado, principalmente se ela for ser cantada depois. Surgem traduções nosense e também algumas muito boas, como essa do José (vamos chamar o tradutor de José).
Aqui no nordeste, muitas música em italiano dão origem a músicas de forró e, como era de se esperar, ficam horríveis. Mas para ter exemplos de boas traduções, basta ler as letras de Chico Buarque em italiano. Roda viva ficou linda.
Ótimo post!

Igor
www.traduz-se.blogspot.com