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domingo, 18 de novembro de 2007

O rei da Espanha e o presidente da Venezuela

Então, foi assim: de repente, o rei da Espanha volta-se para o presidente da Venezuela e pergunta – Por qué no te callas?

Nosso problema, aqui, é como traduzir isso para o português do Brasil. Em Portugal talvez tenham traduzido como Por que não te calas? Não cai bem no Brasil, mesmo nas regiões onde o tu é comum, como no Rio Grande do Sul. Não soa natural. É correta. Mas nem tudo o que é correto é natural. Pode ter sido natural numa época mais antiga e não duvido que algum bom gaúcho me venha com uma frase de algum personagem histórico, que tenha dito Por que não te calas? Mas, nos dias de hoje, não é correntio, ao passo que a fala do rei é perfeitamente natural em espanhol atual. Deve ser pronunciada milhares de vezes por dia na Espanha e fora dela, por gente de todas as classes sociais. A tradução em português do Brasil deve ser natural no português de hoje também.

Pelo menos é assim que penso: natural em L1 deve dar natural em L2. Há exceções, sim, como para tudo. Uma delas é a situação paratradutória em que o objetivo é explicar como funciona a sintaxe de uma outra língua, caso em que, por exemplo, é lícito traduzir Ich habe einen neuen Pc gekauft por eu tenho um novo PC comprado. Fora disso, natural eu traduzo por natural e a frase deveria ser comprei um PC novo e acabou a história.

A forma interrogativa aí é um artifício retórico. A frase é uma expressão de irritação, não uma pergunta. Muitas vezes, esse tipo de observação vem seguido de um termo insultuoso qualquer: por qué no te callas, ___? (preencha com seu termo insultuoso predileto em espanhol). Mas não veio e, portanto, por mais que você ache que o presidente merecesse a adição insultuosa, não nos cabe agregar. Cabe-nos traduzir o que foi dito, o real, não o potencial.

Quer dizer, não nos cabe retocar o que o rei disse: somos tradutores, não retocadores do discurso alheio, e isso nos deve bastar: sapateiro não deve subir acima do sapato. Retocaria se fosse um mero deslize irrelevante, mas o uso da segunda pessoa do singular não foi um deslize nem muito menos foi irrelevante. Para mim, o te é tão importante quanto o callas.

Numa situação informal é até pensável que o rei da Espanha tratasse o presidente da Venezuela por e recebesse o mesmo tratamento como forma demonstração de afeto. Mas, numa situação formal, não é a regra. E a entonação do rei deixa claro que não é um modo brincalhão de quebrar o protocolo. O rei tratou o presidente como inferior. E esse tratamento de cima para baixo deve ser refletido na tradução.

O rei andou bem em usar o te callas? Deveria ter ele se mantido calado em vez de protestar contra a fala do presidente? Deveria ter agregado um termo insultuoso? Como cidadão e homem interessado em política, a questão me fascina. Como tradutor, não posso me deter nela. Nem me cabe traduzir a frase dentro do estilo que, na minha opinião, deveria caber numa reunião daquelas.

Tenho que dar ao meu leitor a tradução que lhe permita tirar suas próprias conclusões. Essa é minha obrigação profissional, é para isso que me pagam e não posso colocar minha ideologia acima dela.

Alguns jornais traduziram a frase como Por que não se cala?, omitindo o pronome. A frase fica correta, perfeitamente correta – e pode ser interpretada corretamente, já que o sujeito, que ficou implícito, de acordo com a gramática portuguesa, dado o verbo na terceira pessoa, pode ser tu, o senhor, Vossa Excelência ou até Vossa Santidade, entre mil outras coisas.

Mas aí é que bate o ponto. A frase espanhola não deixa margem a dúvida: o único sujeito possível é tu e o por que não se cala permite vários sujeitos. Não nos cabe criar uma ambigüidade perfeitamente evitável em português quando em espanhol não há nenhuma.

Creio que, neste caso, é essencial deixar o pronome do caso reto explícito em português. E, salvo no caso de uma tradução regionalista, me parece essencial usar você: por que você não se cala?

Entretanto, nem a frase acima me parece boa. É forçada em português. Haverá quem use, mas não é normal. Para mim, o que o rei disse, em bom português brasileiro, é por que você não cala a boca?

Cabe a nós, tradutores, suavizar a frase dura, porque, no fim das contas, uma frase dessas pode dar origem a um incidente diplomático? Não creio que tenhamos esse direito. Quem lê nossa tradução tem o direito de saber o que foi dito – é para isso que nos pagam. Além disso, foi transmitido ao vivo, está no Orkut, não viu quem não quis. Quer dizer, é bom não nos aventurarmos a salvadores do universo, quando o máximo que podemos fazer é tapar o sol com uma peneira.

2 comentários:

Joana disse...

Boa tarde, sou estudante da faculdade e tenho um trabalho importante e algo urgente para entregar. Pesquiser durante horas a fio no Blackle (vamos poupar energia e salvar o planeta com pequenos gestos) de um site com uma tradução especifica mas acabei por vir parar a este blog e depois de ler algumas entradas, achei que poderia ter a minhas resposta aqui.
O meu trabalho é uma tradução para linguagem gestual de uma música que foi feita para uma campanha da faculdade. No entanto, ninguem sabe linguagem gestual. É do meu conhecimento que existe um site mundial com um dicionario de linguagem gestual, que seria muito util para esta tradução... mas não o encontro. sera que é possivel dar-me uma dica de como posso fazer esta tradução e uma vez que este blog se dedica a traduções, tentar dar o conhecimento aos outros leitores deste serviço, que promove a igualdade de direitos ?
Agradeço a sua resposta e continue com este bom trabalho.


Respeitosamente,
Joana Lami.

Anônimo disse...

Talvez... "Porque você não cala essa boca?" ou "Porque você não cala sua boca?".