Houve uma época em que eu traduzia muitos relatórios para o inglês. Meus maiores clientes eram as firmas de auditoria e traduzi acho que uns bons mil balanços na vida. Uma vez, um dos clientes, uma estatal, me pediu para traduzir, além das demonstrações contábeis propriamente ditas, o relatório da diretoria. Depois de eu ter aceito, disse assim, meio como se não tivesse importância, Essa parte você vai pegar no cliente e cobra dele. Tocou uma sirene no meu bestunto, acompanhada de luzes vermelhas piscando loucamente, mas não tive jeito de recusar. Hoje, recusaria. Mas os tempos são outros e eu também.
Fui lá, no escritório do cliente. Recebido com mil formalidades e cortesias, pediram uma proposta. Isso foi antes da lei das licitações e as coisas eram menos formalizadas. Fiz em casa uma proposta e levei para eles. Pagamento em sete dias. Aprovaram quase sem ler. Mau sinal.
O texto era uma coisa de doidos. Não era muito técnico, disse lá o meu contato. Sempre que disserem não é muito técnico, fuja, fuja correndo: significa que é um emaranhado de pensamentos confusos saídos de mentes alucinadas. Aquele não era a exceção. Não tinha pé nem cabeça e ninguém se importava muito porque ninguém ia ler mesmo. O relatório da diretoria era uma obrigação legal e, para muitas empresas, se resumia a quatro linhas de coisa nenhuma. Mas grandes empresas escreviam grandes relatórios, com fotos maravilhosas e textos horrorosos. Mas, como eu disse, ninguém se importava, porque ninguém lia mesmo: liam-se as demonstrações contábeis e as notas, o relatório da diretoria era só para enfeitar.
Ninguém lia, ninguém lia, mas eu tinha que ler. Que ler e entender. Entender e botar
Terminado, nada. Nem tinha começado. Uma vez que você preste um serviço para uma empresa dessas e entregue sua fatura, vira doente contagioso. Todas aquelas pessoas formais e simpáticas que falavam com você horas sobre tudo ou sobre nada, repentinamente somem do mundo. Ninguém te diz mais nada. Parecia que eu tinha o corpo e – até a voz, porque nem ao telefone falavam comigo – recoberto de feridas purulentas.
Quatro meses depois, recebi uma carta avisando que poderia retirar meu cheque num certo dia numa certa hora num certo local – era no tempo do pagamento em cheque, ainda.
Fui lá. Meu São Jerônimo! Vai para o sétimo andar, pega um papel que carimba no décimo, desce para o térreo onde troca por uma ficha que leva ao oitavo. Fila para entrar na fila de quem precisa entrar na fila. Mais de duas horas para pegar o raio do cheque. Voltei para casa, passei no banco, depositei. Pelo menos, tinha fundos. Já é alguma coisa.
Mas nunca mais prestei serviço ao poder público.
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