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sexta-feira, 28 de março de 2008

O dia em que eu virei doente contagioso

Tradutor velho tem muitas histórias. Esta me foi lembrada por um caso longo e complicado que ainda preciso trabalhar um pouco para publicar, porque é longo e complicado. Fica então este aqui de aperitivo.

Houve uma época em que eu traduzia muitos relatórios para o inglês. Meus maiores clientes eram as firmas de auditoria e traduzi acho que uns bons mil balanços na vida. Uma vez, um dos clientes, uma estatal, me pediu para traduzir, além das demonstrações contábeis propriamente ditas, o relatório da diretoria. Depois de eu ter aceito, disse assim, meio como se não tivesse importância, Essa parte você vai pegar no cliente e cobra dele. Tocou uma sirene no meu bestunto, acompanhada de luzes vermelhas piscando loucamente, mas não tive jeito de recusar. Hoje, recusaria. Mas os tempos são outros e eu também.

Fui lá, no escritório do cliente. Recebido com mil formalidades e cortesias, pediram uma proposta. Isso foi antes da lei das licitações e as coisas eram menos formalizadas. Fiz em casa uma proposta e levei para eles. Pagamento em sete dias. Aprovaram quase sem ler. Mau sinal.

O texto era uma coisa de doidos. Não era muito técnico, disse lá o meu contato. Sempre que disserem não é muito técnico, fuja, fuja correndo: significa que é um emaranhado de pensamentos confusos saídos de mentes alucinadas. Aquele não era a exceção. Não tinha pé nem cabeça e ninguém se importava muito porque ninguém ia ler mesmo. O relatório da diretoria era uma obrigação legal e, para muitas empresas, se resumia a quatro linhas de coisa nenhuma. Mas grandes empresas escreviam grandes relatórios, com fotos maravilhosas e textos horrorosos. Mas, como eu disse, ninguém se importava, porque ninguém lia mesmo: liam-se as demonstrações contábeis e as notas, o relatório da diretoria era só para enfeitar.

Ninguém lia, ninguém lia, mas eu tinha que ler. Que ler e entender. Entender e botar em inglês. E inglês bonito, ainda por cima. Passei dias na exegese daquele lero-lero e, finalmente, entreguei o serviço e a fatura, que foi, na minha frente, aprovada por alguém lá que aprovava faturas. Nos dias seguintes, mais uma vintena de sandeus leu o texto, cada uma fazendo alterações mais estranhas do que as outras, até que o texto perdeu não só a relação que tinha com o original como qualquer sentido que tivesse inicialmente. Mas isso não era da minha conta. A minha parte, eu tinha feito, a odisséia tinha terminado.

Terminado, nada. Nem tinha começado. Uma vez que você preste um serviço para uma empresa dessas e entregue sua fatura, vira doente contagioso. Todas aquelas pessoas formais e simpáticas que falavam com você horas sobre tudo ou sobre nada, repentinamente somem do mundo. Ninguém te diz mais nada. Parecia que eu tinha o corpo e – até a voz, porque nem ao telefone falavam comigo – recoberto de feridas purulentas.

Quatro meses depois, recebi uma carta avisando que poderia retirar meu cheque num certo dia numa certa hora num certo local – era no tempo do pagamento em cheque, ainda.

Fui lá. Meu São Jerônimo! Vai para o sétimo andar, pega um papel que carimba no décimo, desce para o térreo onde troca por uma ficha que leva ao oitavo. Fila para entrar na fila de quem precisa entrar na fila. Mais de duas horas para pegar o raio do cheque. Voltei para casa, passei no banco, depositei. Pelo menos, tinha fundos. Já é alguma coisa.

Mas nunca mais prestei serviço ao poder público.

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