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quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Causo: O Dia em que Escapei de Boa

Houve uma época em que os bichos falavam, as galinhas tinham dentes e eu fazia tradução intermitente, na área de negócios, acredite se quiser. Mas, início de carreira, a gente faz de tudo e se acha o maioral.
Um dia, fui chamado para discutir uma participação num encontro. A promotora era uma pequena firma de auditoria, com mais pretensões do que fundos. Chegando lá, não demorou para perceber que não ia dar certo. Logo na recepção, havia um quadro com uma lista completa das outras firmas que faziam a glória do grupo no mundo todo e uma delas ficava na "Ilha do Homem". Apavorei. O dono sofria de logorreia desenfreada e falava sem parar. Além disso, sendo um tanto surdo, falava aos berros. Tinha convidado um amigo para me testar e o amigo sabia menos inglês do que eu, se é que sabia alguma coisa. Era brabo.
Depois das amenidades consuetudinárias, uma introdução de meia hora sobre a glória do grupo e da conferência de que eu ia ter a felicidade única de participar, fui informado que haveria, além dos americanos e ingleses, uns tantos hispanófonos.
A presença de três línguas exige simultânea pura, que eu não faço. Expliquei isso e expliquei que poderia recomendar colegas que fizessem. Como, para piorar, era uma reunião de dia inteiro (ao contrário do que me tinham informado) eram quatro profissionais por cabine, oito ao todo, mais o aluguel do equipamento. Fora de propósito, claro, porque o grupo estava em uma fase transitória de alguma contenção nas despesas, mas isso não é problema meu.
O cara insistiu que eu devia fazer uma tradução inglês-portunhol. Recusei. Para tudo há um limite. Acabou ali a conversa. Ele disse que ele próprio faria a interpretação. Consegui ficar com a boca fechada. Agradeci, me despedi, saí, tomei um café num bar próximo, para estabilizar o estômago e voltei para a casa. Começo de carreira, pouco serviço, um serviço perdido era algo de muito importante. Paciência.
Depois, soube do resultado, por conhecidos comuns.
A reunião se deu na própria firma. Como o dono sofria de logorreia desenfreada e, além de tudo, se viu na posição de participante e intérprete, teve uma apoteose mental pirotécnica e, nas raras ocasiões em que deixava alguém falar, na hora de traduzir, comentava, analisava, agregava,  retrucava. No meio da reunião, alguém cometeu o erro de protestar, o que agravou ainda mais a situação, porque a resposta dele foi altíssona, grandíloqua e sesquipedal e a tradução foi pior ainda. Para coroar, o inglês do cara era uma miséria do cão.
Em suma, escapei de boa.
Obrigado pela visita e até amanhã, quando posto coisas sérias de novo.

6 comentários:

julio disse...

hahahahahah. muito boa

Anônimo disse...

Opa! Protesto veemente. Desde quando falar de simultânea e consecutiva e de suas variantes simultiva e consecutânea não é coisas séria?

Se tivessem me consultado, saberia quem indicar para resolver o problema: um "profissional" que, sério, perguntou ao cliente quantos por cento de português e espanhol ele queria no portunhol! 50-50? 60-40? Ou quem sabe 86,59-13,41%? (Acho que até já comentei isso aqui!)

E o cliente ainda achou que a criatura era o "solution provider" dos sonhos!

Corta a cena. Pano rápido.

Raquel Schaitza

Danilo Nogueira disse...

Creio que nunca falou, Raquel. Eu jamais esqueceria um comentário que envolvesse matemática superior avançada como esse seu.

Lorena Leandro disse...

Há! Isso me lembra quando eu era secretária bilíngue e o diretor da empresa cismou comigo que "ours" não existia, porque "our" não tem plural! Diante da minha explicação e depois de um educado bate-boca, ele disse que ia ligar para um amigo dele americano, confirmar a informação e me ligar de volta. Estou esperando o retorno até hoje! A gente tem que passar por cada uma pra se sustentar...

Danilo Nogueira disse...

Ele deve ter comentado com o amigo algo do tipo "a Lorena é intelignete e tal, mas é muito novinha, precisa tomar cuidado". Mas isso passa com a idade. Quando você chegar à minha idade e for uma tradutora veterana, o cliente vai dizer "sabe, a Lorena é inteligente e tal, mas já está meio caquética, precisa tomar cuidado".

Lorena Leandro disse...

Hahahaha, e entre o novinha e o caquética a gente pode ser chamado(a) de milhões de outras coisas! Isso sim requer muito cuidado! rsrsrs