Arquimedes teria dito "deem-me uma alavanca e movimentarei o mundo". A maioria dessas frases foi inventada por um escritor sem nada de melhor que fazer: Cambronne provavelmente nunca disse "a velha guarda morre, mas não se rende", nem muito menos aquilo que muita gente pensa que ele disse, porque ao que tudo indica foi preso pelos ingleses antes do fim da batalha. O homem vai, a frase fica, mesmo que nunca tenha sido dita. Nem comecei, já estou me desviando do assunto. O tema hoje é o "tradutor e Arquimedes" e eu não falei nada de tradução, ainda.
Para encurtar a conversa, este mundo está cheio de tradutores arquimedistas. A frase deles é "deem-me um glossário e traduzirei o mundo". A primeira coisa que fazem ao "pegar um trabalho" é postar na Internet o pedido de um "bom glossário" e vão firmes, valentes, corajosos, substituindo os termos do original pelas sugestões do glossário, uma a uma, até o fim. Quando o glossário oferece duas traduções, usam avançados processos de seleção, tais como "minha mãe mandou bater neste daqui". Entregam o trabalho, regozijando-se em sua glória.
Difícil explicar minha ira e amargor com esse tipo específico de pseudo tradutor, que não sabe que a tradução começa quando fechamos os glossários e dicionários, que só se traduz bem o que se entendeu bem e que ninguém consegue entender bem um texto em língua estrangeira a força de glossários.
Estou vendo que vou ter de voltar ao assunto amanhã ou segunda-feira, porque não tenho como dizer tudo o que quero hoje. Mas vou voltar, sim, porque o assunto merece. Mas não posso encerrar por hoje sem uma advertência: aquele monstro, aquela gárgula, aquela teratologia glossográfica que vaga pela Internet feito alma penada e é dada como o glossário de dois famosos escritórios de tradução de São Paulo e de uma firma de auditoria é uma grosseiríssima falsificação. Não passa de anotações feitas às pressas por mil tradutores e tradutoras, muitos deles bisonhos metafrastes que anotavam aquelas coisas sem nem antes se benzerem para pedir ajuda divina e distribuíram sem grande senso de responsabilidade. Não acredite naquele glossário, por favor. Não faça isso. A maior parte do que está lá é bobagem.
Até amanhã, ou, na pior das hipóteses, segunda. Obrigado pela visita.
5 comentários:
Ótima reflexão. Muitos tradutores morrem de medo da expressão "tradutor criativo", pensam que traduzir é simplesmente transportar significados, como se houvesse significado estanque, como se não houvesse interpretação e muitas outras variáveis (fora dos dicionários) entre um texto e um texto traduzido.
Danilo, você escreve que "...a tradução começa quando fechamos os glossários e dicionários, que só se traduz bem o que se entendeu bem".
O exame para tradutor público na Alemanha, há uns 15 anos, exigia três provas escritas sem consulta. De início, pode parecer um absurdo. Mas sabendo que os examinadores levavam isso em conta na correção e que o propósito era justamente ver a capacidade de cada um para encontrar soluções que demonstrassem o entendimento do texto, mesmo sem usar um termo que correspondesse exatamente ao original, até que faz sentido. Afinal, o que acontece mais tarde na profissão é isso mesmo: o trabalho começa onde os recursos dos dicionários acabam.
Bete,
…o que não deixa de ser uma demonstração de inteligência dos examinadores.
Tem muito tradutor que subestima o trabalho de pesquisa. Para mim, no fundo, a pesquisa é que faz a tradução. Mas não é pesquisar e colocar lá no texto a primeira coisa que encontrar, claro! É pesquisar com comprometimento. Quando traduzimos, nos comprometemos com a verdade.
O pior é ver quem coloca "literatura" como especialização e vai postar dúvidas primárias em fóruns sobre tradução. Pedem susgestões para a tradução de enunciados desprovidos de amibiguidades. Ou seja - só conseguem mesmo viver de glossários. Não têm sensibilidade quanto a contextos.
Um abraço,
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