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sexta-feira, 30 de outubro de 2009

As Mulheres, de Novo

Ontem disse que não sabemos ao certo quantas mulheres traduziram e tiveram seu trabalho assinado por homens. A rigor, não é possível saber quem fez uma tradução, sabe-se, se tanto, quem disse que fez. Por isso que essa historiada toda de regulamentação da profissão é balela. Vai-se saber que a tradução leva a assinatura de Alfa Beta da Gama, CRT 176-671, mas se foi a Alfa mesmo que traduziu ou se foi a Zeta Omega, que nunca se registrou para nada, é quase impossível determinar.

Mas eu queria falar das mulheres, de novo, para encerrar este assunto, enquanto é tempo.
Para falar delas, vou citar o exemplo de Fanny Cäcilie Hensel, mais conhecida pelo seu nome de solteira Fanny Cäcilie Mendelssohn, irmã do compositor Felix Mendelssohn Bartholdy. Fanny era brilhante musicista e deixou mais de 400 composições, nenhuma das quais publicada em seu nome durante sua vida, porque não ficava bem para uma moça de família ser compositora. Isso de compor era coisa de homem.

Contra os desejos da família, seu irmão Felix chegou a publicar algumas das obras dela. Mas não teve coragem de publicar sob o nome da irmã: publicou sob o seu próprio. Restou à pobre Fanny o gostinho de saber que, quando o irmão foi tocar numa audição particular para a rainha Vitória, sua majestade, sem saber da história, escolheu exatamente as composições de Fanny, dizendo que eram as mais belas de quanto Felix tinha escrito.

Quantas vezes aconteceram coisas semelhantes com tradução, jamais vamos saber. Quantas mulheres terão traduzido desde livros até cartas comerciais e visto seu trabalho apresentado como de seus maridos, será sempre um segredo.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

O Lado Feminino da Tradução

Antes de voltar aos calotes — assunto sempre fértil, aqui — deixa fazer uma observação sobre as mulheres. Gente, como tem mulher tradutora! Nos encontros de tradutores, geralmente temos 90% de mulheres. Uma barbaridade.

Houve uma fase em que três membros da diretoria do sindicato (que tem quatro membros ao todo) eram mulheres. Um dia, ou o Sintra ou a Abrates vão ter de criar um "departamento masculino" para acomodar os membros do sexo barbado.

Sempre houve muitas mulheres traduzindo. Como as oportunidades de trabalho para as mulheres eram muito poucas, principalmente para as mulheres mais instruídas, que não iam se sujeitar a trabalhar em tecelagam ou como domésticas, quem não se sentia bem como professora, tendia a traduzir.

Houve uma época em que uma mulher de família, se casada, adminsitrava a casa da melhor maneira possível, mas não se envolvia em ganhar dinheiro. Entre as boas famílias, saber quanto ganhava o marido era considerado algo indecente para uma mulher. As solteiras, limitavam-se a esperar marido ou fazer algo na igreja. Era isso, ou ser professora — ou tradutora.

Como em todo lugar, a competência dessas tradutoras variava de altíssima a quase nula, mas, nisso, estavam par a par com os homens. O problema era que muitas das mulheres eram esposas ou filhas de homens bem-ganhantes e não faziam a menor questão de lutar por uma remuneração melhor. Peguei o fim dessa era e cheguei a conversar com uma mulher que dizia "Graças a Deus, meu marido ganha muito bem e, graças a Deus, eu não preciso ganhar dinheiro e, graças a Deus, posso aceitar qualquer serviço e, graças a Deus, não me falta o que fazer". Dizia isso com uma arrogância única, como se fosse superior a todos nós, ali, que tínhamos de dar um duro danado para sobreviver. Não se dava conta de que ela estava subsidiando o setor editorial com o salário do marido e prejudicando a todos nós com uma concorrência desleal e, além de tudo, dificultando a criação de uma profissão de traduzir, porque não se cria uma profissão enquanto houver a turma que trabalha por qualquer preço.

Ainda bem que esse tipo de pessoa praticamente desapaeceu. O lado feminino da profissão se profissionalizou inteiramente e exige remuneração igual à dos homens, no que estão muito certas. E mesmo aquelas que fizerm um bom casamento (ou um bom divórcio), fazem questão de cobrar o mais que puderem. Há anos não ouço uma que diga "Graças a Deus, não preciso disso e trabalho por qualquer preço".

Graças a Deus, digo eu, embora seja agnóstico.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Recado para Mayra

Você deveria escrever para a Denise. Ela sabe dessas coisas melhor que eu. Aqui, repico as descobertas dela, para ajudar na divulgação.

Calote - as causas

Um cliente — seja pessoa física ou jurídica, um estudante ou uma grande empresa, pode atrasar pagamentos por vários motivos: acidente, falta de organização, falta de ética, falta de dinheiro.

Acidentes que impeçam pagamento hoje são raros: há anos, incendiou-se o prédio onde funcionava um cliente meu e eles demoraram um tempinho para conseguir pagar os fornecedores, porque os arquivos se tinham queimado e eles ficaram perdidos nas contas. Hoje, os arquivos "estão no sistema" e o sistema tem que ter planos de emergência. Em caso de um incêndio destruir o prédio, o plano de emergência tem de prever até em que lugar físico o pessoal tem de se apresentar ao trabalho no dia seguinte.
Então, sobram as três faltas: organização, ética e dinheiro.

Falta de organização é comum em pessoas físicas. O sujeito simplesmente não te estrutura formalizada de contas a pagar e pagamentos e se atrapalha todo. Todas as vezes que você presta serviços a uma pessoa física, seja ela o cliente final, seja um colega servindo de intermediário, está sujeita aos efeitos maléficos da bagunça administrativa do vivente. Em pessoas jurídicas, é indesculpável.

Falta de ética é outra coisa. É o cara ter o dinheiro, saber que deve, ter tempo e condições de pagar, está tudo em ordenzinho, mas ele não paga. Temos um caso, muito discutido nas listas, de uma senhorita que usou todo o dinheiro "da firma" para financiar suas bodas e mais uma viagem e achou, tendo dito isso claramente, que não podia pagar tradutores quando tinha que gastar uma fortuna no seu casamento e quem já tinha passado por isso, sabia o que era. Curioso que houve quem a defendesse — inclusive afirmando que ela tinha acabado por pagar todos e continuava mandando serviço. Uma pessoa que age assim, que acha que seus fornecedores têm a obrigação de financiar suas festas particulares, é totalmente desprovida de ética; de um egoísmo total.

Falta de dinheiro é resultado da falta de organização ou da falta de ética. O sujeito pode ter feito como a donzela aí acima e resolvido financiar sua vida particular com o dinheiro dos fornecedores, o que é falta de ética. Do lado da falta de organização, cabe aqui lembrar um outro lado do problema: o do cliente que está sem dinheiro para nos pagar porque é tão desorganizado que não faturou os clientes finais dele.
Mas o fato é que, no nosso bolso, a dor é a mesma, não importa a causa do atraso. E, aí, fica a questão do que fazer, que abordo amanhã.

Obrigado pela visita. Volte sempre.

sábado, 24 de outubro de 2009

Edição Extra: Quanto mais Mexe, mais Fede

Acho impossível que você não conheça a Denise, que mantém um blogue chamado Não Gosto de Plágio, que está deixando algumas editoras botocudas à beira de um ataque de histeria. O passatempo — ou talvez compulsão — da Denise é descobrir plágios tradutórios. Para entender melhor a coisa, visite o blogue dela, uma inacreditável coleção de informações corretíssimas e incríveis.

Vou falar aqui só da última que ela aprontou, porque tenho uma participação secundária na encrenca e porque me fez rir muito.

A Denise tuitou que a Madras tinha republicado uma tradução de A Origem das Espécies de Charles Darwin. A tradução era atribuída a Caroline Kazue Ramos Furukawa e que ela, (a Denise, não a Caroline Furukawa, que talvez nem exista), descobriu que o texto era copiado de uma publicação da Lello, datada de 1913 e assinada por Joaquim Dá Mesquita Paul, que pode ter existido ou não, sabe-se lá. O mesmo texto tinha já sido publicado pela Hemus e pela Ediouro em várias ocasiões. As "traduções" brasileiras trazem algumas alterações, para descaracterizar, mas o texto é obviamente o mesmo.

Como é que podemos dizer que duas traduções diferentes podem ser plagiadas uma da outra? Existem dois meios clássicos, o primeiro deles sendo a comparação da estrutura dos períodos. É fácil notar que alguém pegou a tradução feita em Portugal e foi trocando uma palavra cá e outra lá por um sinônimo:

Joaquim Dá Mesquita Paul (1913):
O exame rápido de alguns casos observados nos animais domésticos permitir-nos-á estabelecer a possibilidade ou mesmo a probabilidade de transmissão por hereditariedade das variações do instinto no estado de natureza.

Caroline Kazue Ramos Furukawa (2009):
O exame rápido de alguns casos constatados nos animais domésticos nos permitirá estabelecer a possibilidade, ou mesmo a probabilidade, de transmissão por hereditariedade das variações do instinto no estado natural.

Veja que "observados" foi trocado por "constatados" e mais umas coisinhas aqui ou lá. Talvez até coisa que o próprio tradutor pudesse ter feito — se lhe tivesse sido dada a possibilidade de reler seu texto. Mas, se você pegar o original e der a dois tradutores, pode apostar que nunca sairiam duas traduções assim.

Mas o segundo meio de detectar o plágio é bem mais eficaz: pelos erros comuns. Se duas traduções repetem os mesmos erros, uma é plágio da outra. Não é a coincidência de uma falha ou duas, mas sim de várias e as duas traduções andam de mãos dadas nos índices de falta de qualidade.

A Denise, que, como eu, acredita que só se pode aquilatar a qualidade de uma tradução mediante comparação, foi procurar o que dizia Darwin e notou, admirada, que "duck" sempre saia como "canário", fato que aponta no blogue dela.

Quando li, logo suspeitei que a tradução da Lello tivesse sido feita do francês. Em francês, "pato" de diz "cannard". Recapitulando, fica mais ou menos assim: Darwin escreveu "duck", o tradutor francês botou lá "cannard", que é corretíssimo, mas o tradutor da Lello pensava que "cannard" significava "canário" e mandou ver. E a Hemus, Ediouro e Madras ajudaram a propagar a besteira.

Mais tarde, apareceu no blogue a Ivone Benedetti e apontou mais uns indícios de que a tradução inicial tinha sido feita de um texto francês. A Denise deu uma sherlockada a mais e encontrou o texto francês de que o português foi traduzido.

Quer dizer, quanto mais mexe, mais fede.

Espero que você tenha se divertido tanto quanto eu.

Uma regra que pode ter escapado

Conheço mais de um tradutor que não sabe a diferença entre hífen e travessão, mas são entidades distintas, tanto para as regras de ortografia, como para nosso computador. Aliás, o computador tem ao menos dois tipos de travessão, de meio ou um quadratim (Alt 0150 e Alt 0151, respectivamente). Pouca gente se importa com esses detalhes, mas, como você sabe, o diabo mora nos detalhes.

Veja, agora, o que diz a antiga ortografia:

52 Travessão – Emprega-se o travessão, e não o hífen, para ligar palavras ou grupos de palavras que formam, pelo assim dizer, uma cadeia na frase: trajeto Mauá – Cascadura; a estrada de ferro Rio – Petrópolis; a linha aérea Brasil – Argentina; o percurso Barcas – Tijuca; etc.

… e o que diz a nova:

XV-7º Emprega-se o hífen para ligar duas ou mais palavras que ocasionalmente se combinam, formando, não propriamente vocábulos, mas encadeamentos vocabulares (tipo: a divisa Liberdade-Igualdade-Fraternidade, a ponte Rio-Niterói, o percurso Lisboa-Coimbra-Porto, a ligação Angola-Moçambique, bem assim nas combinações históricas ou ocasionais de topônimos (tipo Áustria-Hungria, Alsácia-Lorena, Angola-Brasil, Tóquio-Rio de Janeiro, etc.)

Áustria-Hungria sempre foi com hífen, por ser visto como substantivo composto, mas agora, a ponte que liga o Rio de Janeiro a Niterói deixa de ser Rio–Niterói, por analogia com "estrada de ferro Rio – Petrópolis", para ser Rio-Niterói. Neste caso, de cambulhada, acaba a briga sobre se é Rio–Niterói ou Rio – Niterói, com espaços dos dois lados do travessão, porque hífen não leva espaço ao lado.

Aliás, ao que eu tenha notado, o Acordo Ortográfico nada diz sobre o travessão. Mas sobre isso falo outro dia, que preciso voltar aos nossos calotes.

Obrigado pela visita e volte amanhã.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

De volta aos calotes

Parece que certas conversas pipocam sempre em vários lugares ao mesmo tempo. Em diversos ciberpontos de encontro de tradutores de que participo, seja ativamente, seja como observador, esta semana apareceram discussões sobre calote.

Calotes há, sim, na nossa profissão como em todas as outras. O que me surpreende, entretanto, é que algumas das mensagens fazem parecer que o mundo em que vivemos não tem lei nem ordem e que nossos clientes não passam de um bando de canalhas que só nos pagam na marra. Talvez um pouco do que eu chamo de "coitadinização profissional", aquele hábito para mim intragável de choramingar que nossa profissão é horrível e que melhor seria ser faxineira que tradutora, que somos todos uns coitadinhos, pobrezinhos de nós.

Na verdade, a grande maioria dos clientes paga em dia. Alguns pagam com pequenos atrasos e muito poucos pagam com grandes atrasos ou nos passam calotes. Lamentavelmente, é o atrasado que aparece mais, o que dá a falsa impressão de que temos de andar eternamente com a faca entre os dentes, uma pistola em cada mão e uma espada na outra, em perpétua guerra contra as forças do mal, personificadas por nossos clientes.

O assunto é longo e volto a ele amanhã.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Tradução não é futebol

Volto, depois de um breve intervalo para desabafo, ao meu Arquimedes e a história dos glossários.

Por que essa turma pega um glossário e pensa que, com ele, dá conta do recado? Basicamente em razão de um preconceito contra a tradução técnica. A turma acha que tradução técnica é mera substituição de palavras ou, no máximo expressões. Santa ignorância! Polissemia e ambiguidade, metáforas, anáforas, catáforas e todos esses monstrengos que atemorizam o tradutor literário atormentam o tradutor técnico também, embora nem sempre quem "pega" uma tradução técnica para fazer repare nessas coisas e, como sempre, é aí que mora o perigo.

Manda a boa técnica que o tradutor procure, antes de escrever uma palavra do texto de chegada (ia escrever "por uma palavra no papel", mas ninguém mais faz isso), entenda o que o autor disse (ou quis dizer, o que nem sempre é a mesma coisa). Traduzir sem entender é candidatar-se a ser substituído por um computador, que também traduz tudo sem entender nada — além de trabalhar mais depressa e mais barato que o tradutor humano.

A melhor ferramenta para entender um texto ainda é o dicionário unilíngue. Uma vez decifrado o texto, entendido o sentido dos termos menos conhecidos do tradutor, é que vale a pena ver um glossário bilíngue O glossário pode não tiver a palavra, mas, se você entendeu o texto, tem mais chance de achar uma solução. Dependendo da situação, pode ser necessário conferir tudo com um dicionário unilíngue, para ver exatamente o que é o quê. Às vezes, muitas vezes, nada do que o glossário oferece corresponde a qualquer possível significado do termo no original e a pesquisa tem de se estender por outros campos.

O que não pode é ficar trocando palavrinha de uma língua por palavrinha do outro e, depois, quando questionado, dizer "bom estava num glossário que me deram". Isso não é traduzir, é chutar e tradução não é futebol. Juro!

Até amanhã e obrigado pela visita.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Terceirization é a @#@%$¡!¿†‡!!!!!!!

Intervalo para um desabafo.

Você provavelmente conhece o Ulisses Wehby de Carvalho. Se não conhecer, saiba que, entre outras mil coisas, ele mantém o blogue TeclaSAP, com montes de informações úteis sobre a língua inglesa. No Twitter, ele aparece como @teclasap e periodicamente, tuita alguma coisa interessante do seu blogue.

Como ele e eu somos dois bem-humorados, muitas vezes retuito o que ele escreveu, adicionando alguma brincadeira. Outro dia, ele falou em terceirização, que corretamente traduziu para "outsourcing".

Para retuitar a informação, fui procurar "terceirization" na Internet, para ver se conseguia gerar uma brincadeira. E não é que achei? E foram 82 resultados! Pensei que ia achar somente em lugares, digamos "pouco cultos", lembrando do dia em que encontrei "twisted", no sentido de "torcida de clube de futebol", na página de um bocó de mola semianalfaburro que cismou de cantar loas à sua cidade natal em mau português e inglês ainda pior. Mas fiquei de boca aberta ao encontrar "terceirization" no Lattes, Unicamp, USP (também em francês, ainda por cima) Ufba, Ufpg…

Meu São Jerônimo! Será que essa turma não toma um golinho de Simancol de vez em quando? Errar, todos nós erramos, mas escrever "terceirization" em um trabalho desses me parece uma quebra de decoro acadêmico. Sera que ninguém vê? Ninguém lê? Ninguém se importa? Quer dizer, se mete a escrever inglês, tem que escrever direito! Ou será que este pessoal aprendeu inglês aqui?

Também é uma irresponsabilidade, porque propaga a burrice. Vai lá a azêmola tradutora que traduz por obra e graça São Gúgol, sonha que "terceirization" existe, vai consultar o Google e, encontrando a aberração nas páginas de nossas mais respeitadas instituições de ensino, sai, todo pachola, dizendo "encontrei em vários saites de universidades" e usa. Quer dizer, é a anticultura.

Com que direito se fala mal de Joel Santana, quando as páginas de nossas instituições de ensino superior e do respeitadíssimo Lattes seviciam a língua inglesa desse jeito? Ele, ao menos, tem a desculpa de ser um homem inculto, cujos fundilhos nunca foram honrados pelos bancos de nossas melhores instituições de ensino.


sábado, 17 de outubro de 2009

O Tradutor e Arquimedes

Arquimedes teria dito "deem-me uma alavanca e movimentarei o mundo". A maioria dessas frases foi inventada por um escritor sem nada de melhor que fazer: Cambronne provavelmente nunca disse "a velha guarda morre, mas não se rende", nem muito menos aquilo que muita gente pensa que ele disse, porque ao que tudo indica foi preso pelos ingleses antes do fim da batalha. O homem vai, a frase fica, mesmo que nunca tenha sido dita. Nem comecei, já estou me desviando do assunto. O tema hoje é o "tradutor e Arquimedes" e eu não falei nada de tradução, ainda.

Para encurtar a conversa, este mundo está cheio de tradutores arquimedistas. A frase deles é "deem-me um glossário e traduzirei o mundo". A primeira coisa que fazem ao "pegar um trabalho" é postar na Internet o pedido de um "bom glossário" e vão firmes, valentes, corajosos, substituindo os termos do original pelas sugestões do glossário, uma a uma, até o fim. Quando o glossário oferece duas traduções, usam avançados processos de seleção, tais como "minha mãe mandou bater neste daqui". Entregam o trabalho, regozijando-se em sua glória.

Difícil explicar minha ira e amargor com esse tipo específico de pseudo tradutor, que não sabe que a tradução começa quando fechamos os glossários e dicionários, que só se traduz bem o que se entendeu bem e que ninguém consegue entender bem um texto em língua estrangeira a força de glossários.

Estou vendo que vou ter de voltar ao assunto amanhã ou segunda-feira, porque não tenho como dizer tudo o que quero hoje. Mas vou voltar, sim, porque o assunto merece. Mas não posso encerrar por hoje sem uma advertência: aquele monstro, aquela gárgula, aquela teratologia glossográfica que vaga pela Internet feito alma penada e é dada como o glossário de dois famosos escritórios de tradução de São Paulo e de uma firma de auditoria é uma grosseiríssima falsificação. Não passa de anotações feitas às pressas por mil tradutores e tradutoras, muitos deles bisonhos metafrastes que anotavam aquelas coisas sem nem antes se benzerem para pedir ajuda divina e distribuíram sem grande senso de responsabilidade. Não acredite naquele glossário, por favor. Não faça isso. A maior parte do que está lá é bobagem.

Até amanhã, ou, na pior das hipóteses, segunda. Obrigado pela visita.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Ofertas de serviço nas listas

Então, aparece numa lista de tradutores uma oferta de serviço. Diz assim: "Tenho X palavras para traduzir até dia tal, de um texto sobre ao assunto Y. Os interessados devem escrever para zzzzzz@zzzzz.com.br, mencionando taxas e experiência."

Logo em seguida, começa a chuva de perguntas na lista. De que língua para que língua? Quanto você paga? Seguida pelas mensagens se oferecendo para fazer o serviço, cotando preços, dizendo que tinha anexado currículo. Muitas vezes, todas as perguntas ficam sem resposta, para indignação de quem perguntou.

Vamos lá, devagarinho:

A mensagem dizia "os interessados devem escrever para zzzzzz@zzzzz.com.br." Então, por favor, não escreva para a lista, porque a autora da oferta pediu que se escrevesse diretamente para ela. Responder via lista mostra desatenção e incapacidade para cumprir instruções, dois defeitos graves para um tradutor ou revisor e, provavelmente, não vai adiantar nada, — entre outras razões porque a autora da oferta provavelmente jamais lê as mensagens da lista, que só usa como veículo para eventuais ofertas de serviço.

Pior ainda, é a história dos CVs enviados como anexo. Quando você se inscreve em qualquer lista, recebe uma mensagem com as regras e as regras, 90% das vezes, dizem que a lista não aceita anexos. Se mandar anexos para a lista, está dando uma demonstração de que age sem atenção a regras, o que também é muito mau para um tradutor ou revisor.

Isso, claro, sem esquecer dos que começam "estudo Inglês a 07 anos" (a frase anterior tem três erros, não 03).

O pior é que quando alguém adverte que o sujeito fez bobagem, o infeliz dá uma daquelas respostas agressivas e choramingantes, dizendo que foi "crucificado", reclamando da incompreensão dos veteranos e dizendo mais um monte de bobagens. Tadinho dele! Tivesse feito as coisas direito, ninguém reclamava.

Notou que eu ando muito ranzinza de uns tempos para cá? Volte amanhã, quem sabe estou de melhor humor.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

O Caso do Alaor

Então, deixa contar para você a história do Alaor, como prometi ontem, antes que me esqueça.

Precisa ter um pouco de contexto, caso contrário não faz muito sentido. Antigamente, só havia linha discada, de uma lentidão exasperadora. A ligação era "ilegal-consentida", meio como o jogo do bicho ainda é hoje. As Telefônicas diziam que não faziam transmissão de dados e era proibido ligar na linha telefônica qualquer aparelho que não fosse um telefone. Modem era algo que a gente comprava contrabandeado.

Baixar as mensagens custava muito caro e demorava um tempão, porque a conexão caia a toda hora e, ao recomeçar, o provedor mandava desde a primeira de novo. Por isso, não tinha nada desse papo furado que hoje é a norma: escrevia-se pouco, por respeito aos colegas. Quem mais sofria eram os cariocas, com a TELERJ, que martirizava a população com requintes de um sadismo indizível.

A trad-prt tinha, nos dias mais movimentados, dez ou doze mensagens e raríssimos colegas faziam parte de mais de uma lista, porque era caro demais. Linha discada custava caro e, pior ainda, monopolizava o telefone. E ter duas linhas em casa era quase impensável.

Então, um dia, veio o Alaor. Era funcionário de um órgão público e tinha acesso livre à rede, motivo de inveja para todos nós. Não sei o que fazia lá, porque era, confessadamente, ainda pretendente a tradutor.

Um dia, teve de fazer um trabalho para a faculdade. Não sei se foi ele quem arrumou o tema ou se lhe coube por sorteio (ou "azerteio", sei lá), mas um dia teve de criar um glossário português-inglês de termos sobre esportes. Lá sei eu como, ele achou que 2.500 termos estava de bom tamanho. Então, criou uma lista de 2.500 termos em português e criou 50 mensagens, cada uma com 50 termos, mais um texto padronizado, pedindo a ajuda de todos para fazer seu trabalho acadêmico. Por algum motivo que me escapa, a cada mensagem anexou um arquivo Word, repetindo as 50 palavras, deixando as mensagens ainda maiores. Adicionou uma mensagem final, gabando-se de seu feito.

Teve gente que levou mais de três horas para baixar toda aquela porcariada. O custo foi bárbaro, porque a tarifa era escorchante.

A reação da turma foi terrível. Só não chamaram o cara de pdf imagem protegido por senha porque naquela época isso não existia. Do resto, escapou por pouco.

Sujeitinho descarado, queria que a gente fizesse o trabalho para ele. Vai pesquisar, vagabundo! E ainda fazendo trabalho escolar no horário de trabalho, à custa do contribuinte. Quem vai pagar a minha conta telefônica? Você, seu inútil?

A grita foi tanta, que o rapaz saiu da lista e sumiu do mapa completamente. Foi o primeiro grande abuso que vi nas listas. Vieram outros, que fizeram este parecer café pequeno.

Por hoje é só. Amanhã deve ter mais. Obrigado pela visita e volte sempre.


terça-feira, 13 de outubro de 2009

Não se usa mais dicionário!

Quando comecei (lá vou eu de novo!) nem se pensava em Internet. Mesmo telefone, era uma raridade. Uma linha telefônica custava 5.000 dólares — e dólares daquele tempo, não essa porcaria de hoje que não vale nada. Então a gente tinha dicionários, quem era mais atilado tinha uma ou mais enciclopédias, essas coisas. Tudo em papel, claro, porque computador chamava cérebro eletrônico, ocupava um galpão inteiro, custava uma fábula, só tinha em filme e só servia para fazer continhas.

E a gente consultava, fuçava, xeretava os dicionários e enciclopédias até achar a resposta para as nossas dúvidas tradutórias. Às vezes, não achava e tinha que dar uma contornada no problema.

Por isso, quando começou essa coisa de Internet, foi uma beleza. Quando a gente não sabia, procurava na Internet, que era lenta e não tinha quase nada, mas parecia uma maravilha. Outra coisa do outro mundo foi a criação dos fóruns de tradutores. Maravilha você poder pedir o conselho de um colega, ou de uma porção deles ao mesmo tempo. Lembro de um dia em que, no meio de um balancinho daqueles que eu fazia com um pé nas costas, me aparece um parágrafo falando de um produto maldito de cujo proveito ou finalidade eu mal desconfiava. Botei na trad-prt, logo veio um colega com experiência em engenharia, destrinchou o problema num instante. Glória!

Foi um salto de qualidade. Minhas traduções melhoraram muito com as discussões das listas e, posteriormente, do Orkut.

Mas tenho notado uma tendência negativa, maligna: a tendência de criar grandes discussões terminológicas em que todos falam, todos dão palpite, pedem contexto, dão opiniões, falam que têm um amigo da área e tal, ficam horas discutindo o assunto, quando não se pegam numa briga, sem que alguém se dê ao trabalho de abrir um dicionário. Isso irrita, irrita profundamente.

Também me surpreenda a quantidade de pessoas dando palpites nessas discussões. Há tempos que não entro nelas, embora dê vontade de entrar só para dizer alguma coisa antipática.

Um dia, um colega nosso se encheu e disse "na página X do meu Collins Gem, diz que é tal coisa". Acho que só eu percebi a ironia, porque o beneficiário da informação nem deu aquele piti de ofendido que é clássico.

Então, lá vem a sugestão: antes de pedir ajuda, pesquise. Quando não tiver mais onde pesquisar, aí, então, peça ajuda. Consulte um dicionário. Aprenda a usar um dicionário. É fácil e agradável. Leia prefácio de dicionário, para saber tudo o que ele ensina. É uma delícia.

E, amanhã, vou contar a história do Alaor, porque por hoje, chega. Obrigado pela visita e volte sempre.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Um Ideal

Estou chegando ao fim das divagações sobre interpretação, resultantes do que vi e ouvi na Jornada da USP. Amanhã, temos outro assunto.

Um ponto interessante abordado mais ou menos da mesma maneira pelos palestrantes foi a formação do profissional de interpretação simultânea.

O alto grau de bilinguismo era pré-requisito previsto, portanto dispensou discussão. Vamos à formação, propriamente dita.

Parece que se começa com tradução de texto para texto, ao mesmo tempo em que se exige paráfrase. Até o momento em que ouvi Reynaldo Pagura falar em paráfrase, não me tinha dado conta da importância desse recurso para a formação do tradutor – é nisso que dá viver fora do ambiente acadêmico – mas agora me parece óbvio. Em seguida, vem a tradução consecutiva e, por fim, a simultânea propriamente dita.

À primeira vista, parece uma série do tipo "começa pelo fácil, termina pelo difícil". Mas todos os palestrantes disseram que consideravam a consecutiva, o segundo grau, mais difícil que a simultânea, que era o terceiro. Pareceu um contrassenso essa história de primeiro aprender o mais difícil e depois o mais fácil.

Aí lembrei de um comentário da Raquel Schaitza (vou ter que pagar a ela por usar tanta coisa que ela disse): muitas vezes, as pesquisas dela como tradutora de texto para texto foram úteis para a simultânea e, outras vezes, a presença de espírito desenvolvida na simultânea foi útil na hora da tradução de texto. Depois me lembrei de uma de minhas observações prediletas: que gostaria de aprender a legendar só para tentar adquirir aquela capacidade de condensação que os legendadores desenvolvem em alto grau.

Sim, faz sentido. Todos os tipos de tradução estão entreligados e o conhecimento de um dos tipos sempre ajuda na execução do outro. O ideal seria um curso básico de tradução lato sensu em que o aluno aprendesse os rudimentos de todas as espécies de tradução, para depois se especializar nos ramos para os quais tivesse mais talento. Para entrar nesse curso, evidentemente o interessado seria obrigado a demonstrar um excelente conhecimento de sua língua materna e, ao menos, de uma língua estrangeira, visto que curso de tradução não é curso de idiomas e encarar Gideon Toury antes de ser capaz de dominar as quatro habilidades básicas é contraproducente.

Mas, lamentavelmente, tudo isso é só um ideal. Uma pena.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

O Novo Houaiss

É com grande satisfação que publicamos um texto de nosso colega Guilherme da Silva Braga com informações claras e objetivas sobre o novo dicionário Houaiss. Agradeço a ele o privilégio da publicação e tenho certeza de que você vai gostar. ______________________________________________________________________

Cuidado com o novo Houaiss![i]
Guilherme da Silva Braga[ii]

Porto Alegre, 8 de outubro de 2009.

Muita gente deve estar saudando o recente lançamento do novo Dicionário Houaiss da língua portuguesa, atualizado segundo os critérios estabelecidos pelo recente acordo ortográfico, como uma solução muito bem-vinda aos problemas levantados pela reforma e agravados ainda mais pela inaptidão demonstrada pela Academia Brasileira de Letras, que publicou um Vocabulário Ortográfico cheio de erros e falhas, elaborado às pressas e de qualquer jeito com fins unicamente monetários[iii].

Infelizmente não é bem assim.

Quase comprei o dicionário assim que o vi, pois acreditei tratar-se de uma versão atualizada do antigo dicionário Houaiss – mas por sorte li algumas informações que começaram a circular pela internet segundo as quais a nova edição do Houaiss não seria tão completa quanto a anterior, embora tivesse o mesmo nome.

Na tentativa de esclarecer a situação – pois eu só teria interesse na nova edição se esta fosse de fato uma atualização integral do Houaiss que eu já conhecia –, fiz uma consulta ao site da Editora Objetiva, mas os dados apresentados por lá servem mais para confundir do que para esclarecer. Aliás, são tantos os dados referentes ao novo Houaiss apresentados de forma confusa que é quase impossível não suspeitar que, ao menos em parte, a confusão seja proposital, como se verá mais adiante.

Segundo a editora Objetiva informa em seu site, o antigo Dicionário Houaiss da língua portuguesa[iv] traz

+ de 228 mil verbetes

+ de 380 mil definições

+ de 3.000 páginas

+ de 90% de caracteres do que os demais dicionários[v]

enquanto à nova edição de seu homônimo, o Dicionário Houaiss da língua português contém

2.048 páginas

Mais de 442 mil entradas, locuções e acepções[vi]

A primeira coisa que me chamou a atenção foram as quase mil páginas a menos da nova edição.

A segunda, mais sutil, foi o fato de a primeira página fornecer dados separados relativos ao número de verbetes e definições da antiga edição, enquanto a segunda traz números aparentemente somados (?) relativos a entradas, locuções e acepções da nova – o que já de saída impossibilita a comparação entre uma edição e a outra.

Se entendermos “verbete” como sinônimo de “entrada” e “definição” como sinônimo de “acepção”, contudo, é possível chegar a um número aproximado relativo à edição antiga: basta somar os “+ de 228 mil verbetes” às “+ de 380 mil definições” e chegamos a “+ de 608 mil verbetes e definições”, ou, como a página sobre a nova edição prefere, “mais de 608 mil entradas e acepções”. Se esse raciocínio estivesse correto, bastaria para demonstrar que a nova edição é bem menor do que a segunda – cerca de 27% menor, e isso sem levar em conta omissão de locuções.

Vale a pena notar como, neste caso, os dados “mais de 228 mil verbetes” e “mais de 380 mil definições” indicados na antiga edição poderiam ser apresentados de modo muito mais impressionante como “mais de 608 mil entradas e acepções” segundo o método usado para a divulgação da nova edição sem incremento algum de conteúdo, bastando, para tal, saber mexer com os números do jeito certo.

Confuso, resolvi entrar em contato com a editora Objetiva para tentar esclarecer o assunto. Enviei três emails e nenhum deles foi respondido. Fiquei sabendo de outros colegas que tentaram o mesmo expediente e tiveram a mesma sorte, ou antes o mesmo azar: a editora simplesmente não se manifesta a este respeito.

Os dados necessários para uma comparação efetiva entre as duas edições tampouco se encontram no site do Instituto Antônio Houaiss, que traz dados semelhantes àqueles apresentados no site da editora Objetiva.

Assim, resolvi ir a uma livraria, munido de lápis e papel, a fim de tirar o assunto a limpo.

Meu método foi simples: anotei o intervalo de palavras constante na primeira página de cada letra do meu antigo Houaiss (a primeira página da letra c, por exemplo, vai de c a caapiá-verdadeiro) e o número de entradas contido neste intervalo – no caso da letra c, 57 entradas.

Na edição do novo Houaiss, contei as palavras contidas no mesmo intervalo e elaborei uma tabela indicando a defasagem do novo Houaiss em relação ao antigo.

Nos casos em que a última palavra constante na primeira página de uma letra qualquer do antigo Houaiss não constava na edição nova, procurei nesta última a primeira palavra situada alfabeticamente após a entrada inexistente e refiz, no antigo Houaiss, a contagem referente ao novo intervalo.

Os resultados encontram-se na tabela a seguir:

Intervalo

N.º de entradas no antigo Houaiss

N.º de entradas no novo Houaiss

N.º de entradas a menos no novo Houaiss

% de entradas a menos no novo Houaiss

¹a – ¹aba

47

23

24

51,06%

b – ²babar

63

38

25

39,68%

c – caapiá-verdadeiro

57

38

19

33,33%

d – ¹dada

83

38

45

54,21%

e – ebriático

77

38

39

50,64%

f – fabriqueta

50

38

12

24%

g – ²gabro

74

46

28

37,83%

h – habitude

55

41

14

25,45%

i – iamologia

59

31

28

47,45%

j – ¹jaca

74

52

22

29,72%

k – katakana

141

21

120

85,10%

l – lábio

54

32

22

40,74%

m – macaco

67

44

23

34,32%

n – nacionalismo

67

38

29

43,28%

o – obdurar

75

51

24

32%

p – pachto

86

59

27

31,39%

q – quádrica

62

41

21

33,87%

r – rabeira

75

50

25

33,33%

s – sabedoria

55

38

17

30,90%

t – tabasco

76

40

36

47,36%

¹u – uapiti

99

63

36

36,36%

v – vacinoterapia

67

47

20

29,85%

w – welwitschiáscea

76

37

39

51,31%

x – xântico

71

45

26

36,61%

y – yuppie

41

19

22

54,76%

z – zambê

65

39

26

40%

TOTAL

1816

1047

749

42,34%

Do quadro acima, percebe-se que a nova edição do Dicionário Houaiss da língua portuguesa é, conforme as informações que circulam pela internet, seguramente e demonstravelmente menos completa do que a edição anterior de mesmo nome. Na contagem acima, a letra que menos sofreu defasagem foi a letra f, que mesmo assim teve uma perda de 24% do número de entradas. As perdas da letra k, no entanto, ultrapassam 85% segundo o mesmo método, e a perda média de conteúdo é de 42,34%[vii].

Mesmo os verbetes mantidos sofreram, por vezes, um processo de encolhimento. O verbo lavar, por exemplo, que contava com quinze acepções na antiga edição, agora conta com apenas sete. O substantivo texto, que trazia oito acepções e três locuções, encolheu até ficar com cinco acepções e nenhuma locução.

Vale frisar que o prefácio da nova edição, assinado por Mauro de Salles Villar, traz alguns esclarecimentos sobre a omissão de elementos mórficos (que supostamente estão incluídos no CD-ROM) e de vocabulário referente a outras variedades do português, como o português lusitano e o português do Timor Leste, bem como a informação que a editora Objetiva omite em seu site não informa por email: esta nova edição do dicionário é uma “obra de cerca de 146 mil verbetes[viii]” – portanto, cerca de 35% menor do que a antiga edição, que somava mais de 228 mil[ix].

O prefaciador também esclarece que a nova edição “situa-se, quanto à extensão, entre o Grande, cuja segunda edição contará com mais de 230 mil entradas, e o Minidicionário, que tem mais de 30 mil palavras e locuções”.

Sem nos determos no Minidicionário, que decerto não interessará aos profissionais de Letras, cabe perguntar: que Grande é esse? Ninguém jamais viu ou teve nas mãos uma obra chamada Grande dicionário Houaiss da língua portuguesa. A editora Objetiva, no entanto, agora trata o antigo Dicionário Houaiss da língua portuguesa por este nome, embora o adjetivo “grande” não figure na capa, na ficha catalográfica nem em parte alguma do referido dicionário[x]. Seria esta mudança retroativa do nome do antigo dicionário, no site da editora e no prefácio da nova edição, uma tentativa de justificar o significativo empobrecimento de conteúdo na nova edição de um dicionário que de fato ostenta o nome exato, letra por letra, de seu predecessor?

É o que tudo indica, pois, como se lê no trecho do prefácio citado acima, o novo Dicionário Houaiss da língua portuguesa, embora tenha nome idêntico ao do antigo Dicionário Houaiss da língua portuguesa, não é uma atualização ou uma nova versão de seu antigo homônimo, mas apenas uma edição intermediária – sem equivalente na antiga ortografia – entre o Minidicionário e o antigo Dicionário Houaiss da língua portuguesa, que hoje a editora Objetiva prefere chamar de Grande dicionário Houaiss da língua portuguesa.

Um quadro comparativo talvez ajude a esclarecer as diferenças:

Antiga ortografia

Nova ortografia

Minidicionário Houaiss da língua portuguesa (mais de 30 mil palavras e locuções)

Minidicionário Houaiss da língua portuguesa (mais de 30 mil palavras e locuções)

[Não havia uma edição intermediária entre o Minidicionário e o Dicionário]

Dicionário Houaiss da língua portuguesa (mais de 146 mil verbetes)

Dicionário Houaiss da língua portuguesa (mais de 228 mil entradas)

Grande dicionário Houaiss da língua portuguesa (ainda inexistente; mais de 230 mil entradas)

Vale lembrar que talvez esta confusão não seja acidental, pois a editora Objetiva estará embolsando dezenas de reais para cada pessoa que comprar um Dicionário Houaiss da língua português acerta de estar comprando uma versão atualizada do antigo e excelente dicionário de mesmo nome que já conhece. Pois não está. Está comprando algo um tanto menor e um tanto menos completo – o que em si não é problema algum, desde que a compra seja feita com conhecimento de causa, e não como resultado de propaganda enganosa.

Assim, talvez caiba pensar duas vezes antes de gastar R$ 250 em um dicionário 35% menor em relação ao antigo Houaiss – que portanto não atualiza e a bem dizer sequer inclui 35% das palavras e locuções de seu predecessor! –, para daqui a algum tempo mais uma vez desembolsar sabe-se lá quanto pela tão aguardada edição completa.

Contraponto – Correspondência com Mauro Salles Villar, lexicógrafo-chefe do Instituto Antônio Houaiss

Enquanto eu escrevia este artigo, entrei em contato com do Instituto Antônio Houaiss, que, ao contrário da Editora Objetiva, dignou-se a prestar muitos, se não todos, os esclarecimentos solicitados, através de seu lexicógrafo-chefe, Mauro Salles Villar.

Parece que o tratamento dado aos números e nomes dos dicionários deve-se a razões comerciais, que competem apenas à editora Objetiva. Isso explicaria por que, embora as informações sejam confusas em todas as demais fontes consultadas, o prefácio – assinado por Mauro Villar – é de uma clareza cristalina em relação a eles.

Reproduzo abaixo, na íntegra e com a devida autorização do meu correspondente, os emails que trocamos.

[Primeiro email, de 17 de agosto.]

Caros amigos do Instituto Antônio Houaiss,

Sou tradutor literário e, há algum tempo atrás, recebi com alegria a notícia sobre a recente edição do Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Logo, contudo, chamaram-me a atenção para o fato de que o novo Dicionário Houaiss da língua portuguesa não era -- surpresa das surpresas -- uma nova edição do homônimo, que, ao que tudo indica, agora parece ter passado a se chamar Grande dicionário Houaiss da língua portuguesa pela editora Objetiva, embora essa denominação "grande" não conste na capa, na ficha catalográfica nem em lugar algum do referido dicionário. Também fui alertado sobre o conteúdo significativamente menor do DHLPem relação ao antigo homônimo.

Na tentativa de esclarecer a situação, fui ao site da editora Objetiva, que apresenta os dados relativos ao antigo DHMP e a seu homônimo de modo absolutamente confuso, indicando, para o antigo, o número de verbetes e definições, e para o novo apenas a soma (?) do número de entradas, locuções e acepções, o que torna impossível uma real comparação entre as duas edições. O site do IAHinfelizmente não ajuda a desfazer a confusão, embora o prefácio da nova edição -- que provavelmente o consulente só vai ler depois de adquiri-la -- afirme de modo claro e categórico que a nova edição é bastante menor do que a anterior.

A confusão dos nomes, aliada à confusão no modo de apresentar os dados relativos aos dicionários, certamente está induzindo muitos incautos a comprar a nova edição do DHLP achando que estão comprando uma simples versão na nova ortografia do antigo homônimo, quando na verdade estão comprando bem menos do que isso.

Não seria mais adequado, portanto, informar estes dados claramente ao consumidor, tanto na página do Instituto Antônio Houaiss quanto na da editora Objetiva? Já tentei contato com eles, mas ao que tudo indica o editorial não responde emails concernentes a esse assunto. Muito me agradaria ler uma resposta de vocês.

Obrigado,

Guilherme Braga (Porto Alegre).

***

[A resposta de Mauro Villar foi-me encaminhada por XXXXX, um outro membro do Instituto Antônio Houaiss, no mesmo dia: 17 de agosto.]

Caro Guilherme,

em resposta ao seu email envio um texto de nosso diretor técnico Mauro Villar.

Atenciosamente,

XXXXX

IAH

***

[Resposta de Mauro Villar em 17 de agosto.]

Caro Guilherme,

O novo dicionário citado tem 146 mil entradas e traz como nome Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. A 2ª edição do dicionário que agora se chama Grande Dicionário Houaiss, obra diferente da anterior, terá, quando sair, mais de 232 mil entradas (atualmente tem cerca 228.500). Também acho que esses são os dados numéricos que precisam estar claros para os compradores, não essa soma de entradas com locuções e acepções inventada por um concorrente que tinha menos verbetes que o Houaiss e por isso precisava de um dado numérico “de peso”. De tal soma chega-se a um total, realmente, mas de quê? Infelizmente, todos os outros vendedores de dicionários foram atrás dessa cálculo, para não ficarem atrás. Sou contra.

O novo dicionário, de porte médio, um pouco maior do que o Aurélio, tem o seu texto atualizado pela grafia oficial do Acordo, e esse é um ponto importante para se entender a sua utilidade. A edição do Grande que ainda existe à venda em sua versão de 1ª edição atualizada não está redigida segundo o Acordo ortográfico. Tal trabalho está em processo (para sua 2ª edição), pois ele tem hoje mais de 60 milhões de caracteres e a alteração ortográfica mexe bastante com as suas macro e microestruturas . Com isso, esse trabalho não pôde ser feito por revisores, mas sim por lexicógrafos, tratando-se de algo muito especializado e longo. Lamento a confusão instaurada com os nomes da capa. O Instituto Houaiss é um centro de estudos lexicográficos da língua e uma fábrica de obras de referência. Eu, geralmente, as projeto e desenvolvo com grupos de especialistas. O Instituto não comercia os livros que faz, para isso contratando uma editora que cuida, então, da produção da obra, sua distribuição, marketing e comercialização por um período determinado.

O grupo do Instituto é muito pequeno e vive assoberbado com o que tem a fazer. (Foram 7 dicionários nos oito anos transcorridos desde que o nosso primeiro veio a lume.) Por essa razão, infelizmente não temos uma seção de respostas aos leitores, cuja correspondência nos chega em quantidade, com perguntas, dúvidas, sugestões, colaborações etc. Espero um dia podermos entrar em contato com quem nos escreve, como estou fazendo excepcionalmente neste seu caso. Faço-o aqui por estar certo que de tem toda a razão no que reclama. Só lhe peço que tenha, pelo menos, paciência conosco e acredite que o trabalho dentro do Instituto procura ser sempre o mais sério em matéria de lexicografia em nossa língua. Mas problemas colaterais existem.

Obrigado por ter-nos escrito,

Mauro de Salles Villar.

***

[Minha resposta foi redigida a XXXXX, mesmo membro do IAH que me reencaminhou o email do Mauro Villar, também em 17 de agosto.]

Caro XXXXX,

Muitíssimo obrigado pela resposta. Estou escrevendo um breve artigo -- a ser publicado o mais breve possível nas listas e blogs de tradutores, revisores e demais profissionais de Letras que frequento -- sobre as diferenças entre as duas edições, em que tento desfazer as confusões referentes aos títulos e aos dados numéricos apresentados nos sites, e gostaria, se possível, de reproduzir na íntegra a resposta do Mauro Villar.

Peço assim, por gentileza, que você encaminhe meu pedido a ele. Também me disponho a omitir certas partes (como as referências ao Aurélio, p. ex.) se ele assim preferir. Neste último caso, favor indicar as partes a omitir.

De qualquer modo, creio que a inclusão de uma resposta integral ou parcial do diretor técnico do IAH no meu artigo só contribuirá para manter a boa imagem do Instituto e do trabalho realizado por vocês, cuja seriedade jamais esteve em xeque, ao menos de minha parte. Trata-se exclusivamente de uma reclamação referente ao modo como o dicionário está sendo vendido, nada tendo a ver com a qualidade do conteúdo que encerra.

No aguardo de sua resposta, um abraço,

Guilherme Braga (Porto Alegre).

P.S.: Por favor estenda os meus agradecimentos ao Mauro Villar.

***

[Resposta recebida de Mauro Villar em 18 de agosto.]

Guilherme,

Pode usar o meu texto como quiser e dele cortar o que quiser também. A resposta foi pessoal, minha para você, não visando publicitação externa; mas se pensar que deve aproveitar o seu texto, por favor, faça os cortes que julgar necessários e use-o como base. Atenção sempre para não criar-me embaraços maiores. É importante, no caso dos dicionários de que falamos, que se entenda que são duas obras diferentes, uma Ferrari e uma (sei lá) Honda Civic, digamos, feitas para públicos diferentes. A primeira excele em filologia, datações com fonte, asiaticismos, africanismos, palavras antigas ou arcaicas na língua atual, regionalismos, aprofundamento em análises etc.; é bem extensa e mais cara. A outra é uma obra mais ágil, sem peso nestas antes citadas informações, focada nos usos atuais da língua e mais voltada para uma óptica brasileira (ou seja, menos ecumênica em sua concepção quanto à lusofonia que o Grande), mas dá, por exemplo, entrada a palavras que mesmo o Grande (na atual edição no comércio) não tem. Para a quase totalidade de usuários, essa obra mais enxuta (embora com 146 mil entradas) será eficaz, além de estar totalmente atualizada; para quem precisar de uma Ferrari, a outra sempre estará à mão. A estrutura lexicográfica e as informações numa e noutra obra são as mesmas; só a sua extensão difere.

Um abraço do Mauro Villar.

BIBLIOGRAFIA:

Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de janeiro: Objetiva, 2004.

Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de janeiro: Objetiva, 2009.




[i] A distribuição deste artigo para fins não lucrativos é livre, desde que respeitados a integridade do texto original e o crédito ao autor.

[ii] Tradutor literário e licenciado em Letras (português-inglês) pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

[iii] Conforme demonstrado nas diversas partes do artigo Não compre o novo VOLP!, assinadas pelo prof. Cláudio Moreno e publicadas no jornal Zero Hora, de Porto Alegre, facilmente encontráveis na internet.

[iv] Hoje a editora Objetiva refere-se ao antigo Dicionário Houaiss da língua portuguesa como Grande dicionário Houaiss da língua portuguesa em seu site, embora o adjetivo “grande” não conste na capa, na ficha catalográfica nem em parte alguma da obra.

[v] Informações disponíveis em <http://www.objetiva.com.br/objetiva/cs/?q=node/574>. Acessado em 13 de agosto de 2009.

[vi] Informações disponíveis em <http://www.objetiva.com.br/objetiva/cs/?q=node/1803>. Acessado em 13 de agosto de 2009.

[vii] Como todas as contagens foram feitas a mão, é possível que haja pequenos erros, o que no entanto não invalida o argumento de que a nova edição do Dicionário Houaiss da língua portuguesa é muito menos completa do que a antiga.

[viii] Dicionário Houaiss da língua portuguesa (2009), p. xi.

[ix] Dicionário Houaiss da língua portuguesa (2004), p. xv.

[x] No primeiro link fornecido acima, vê-se que a página sobre o Grande dicionário Houaiss da língua portuguesa traz a foto de uma obra que estampa apenas o título Dicionário Houaiss da língua portuguesa na capa.